28 de janeiro de 2015

Uma estratégia de rupturas: Dez teses sobre o futuro grego

A profunda crise social e política na Grécia, como um momento “catártico”, também oferece a possibilidade de um caminho social e político diferente, longe do neoliberalismo e do consumismo impulsionado pela dívida.

Panagiotis Sotiris

Viewpoint

Aleksandr Vesnin, Proposta de Monumento à Terceira Internacional, 1921

I

Tradução / O dia 25 de janeiro de 2015 foi um marco de uma mudança histórica no período recente da história grega. Depois de cinco anos de uma austeridade devastadora, de uma crise social sem precedentes na Europa e de uma série de lutas que em certos momentos, especialmente entre 2010 e 2012, tiveram um caráter quase insurrecional, finalmente surgiu uma grande ruptura política. Os partidos que foram responsáveis por colocar a sociedade grega sob a supervisão disciplinar da chamada Troika (União Europeia-Banco Central Europeu-Fundo Monetário Internacional) sofreram uma humilhante derrota. O Paneˈlinio Sosjalistiˈko ˈCinima (Pasok – Movimento Socialista Pan-helênico), que em 2009 chegou a ganhar 44% dos votos, recebeu agora míseros 4,68%; o seu racha partidário, liderado por Giorgio Papandreou, o primeiro-ministro do Pasok que deu início aos programas de austeridade, recebeu 2,46% dos votos. A ˈNea Ðimokraˈtia (Nova Democracia) fez 27,81% dos votos, quase 9% menos que o Synaspismós Rizospastikís Aristerás (Syriza – Coalização da Esquerda Radical). A ascensão eleitoral dos fascistas da Chrysí Avgí (Aurora Dourada) foi interrompida, ainda que eles mantenham um preocupante índice de 6% dos votos. Outro partido pró-austeridade, o To Potami (O Rio), representando a agenda neoliberal (ainda que nominalmente se afirme como centro-esquerda) conseguiu apenas 6,05%, apesar de uma intensa campanha midiática.

De certa forma, essa foi a vingança eleitoral de uma sociedade que sofreu e lutou contra aqueles responsáveis pelo seu sofrimento. Nós não podemos esquecer que a Grécia viu o seu índice oficial de desemprego atingir 27% – e o desemprego dos jovens chegar a 50% – e também que sofreu uma contração cumulativa de 25%, além de ter visto uma redução massiva em salários e aposentadorias, tendo testemunhado a criação de uma violenta legislação orientada para privatizar, liberalizar o mercado de trabalho e reformar as universidades pelo paradigma neoliberal.

II

O Syriza teve uma importante vitória, com 36,34% dos votos e 149 deputados (precisava apenas de mais dois para ter uma maioria absoluta no parlamento). Simbolicamente, essa foi uma vitória histórica. Pela primeira vez na história moderna da Europa, um partido não-social-democrata de esquerda irá formar um governo. Em um país no qual a esquerda foi perseguida durante boa parte do século XX, a imagem de um primeiro ministro cujo primeiro ato após a sua posse foi visitar o lugar onde 200 comunistas foram executados no 1º de maio de 1944, parece até a revanche simbólica de uma história cheia de lutas. Essa mudança política à esquerda é o resultado de deslocamentos tectônicos nas relações políticas e econômicas de representação induzidos não apenas pela crise econômica e social, mas também por um longo ciclo de lutas contra austeridade que agiu como catalizador de novas identidades políticas radicais e novas formas de pertencimento. E sendo assim, ela manda uma importante mensagem de mudança e resistência para toda a Europa e já se tornou uma fonte de inspiração, algo evidente diante da entusiasmada reação do resto da esquerda europeia.

III

Durante a campanha eleitoral, a virada “realista” e à direita do Syriza ficou bastante evidente. A liderança do Syriza abandonou a exigência de uma imediata revogação do memorandum (as condições ligadas aos acordos de empréstimos), que foi o seu principal ponto na campanha de 2012. Ela se afastou da posição de “não se sacrificar pelo Euro”. A nacionalização do sistema bancário não é mais uma de suas exigências mais urgentes. A principal posição programática do Syriza é uma tentativa de pôr fim à austeridade enquanto se mantém a rede institucional, monetária e financeira da zona do euro e da União Europeia (UE). Eles afirmaram sua habilidade de negociar e reestruturar uma redução possível da dívida grega com os credores da UE e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao mesmo tempo, eles passaram a apoiar a ideia de usar contra a austeridade a versão europeia da “flexibilização quantitativa” que o Banco Central Europeu (BCE) recentemente deu início. Mais do que isso, eles insistiram na possibilidade de uma mudança na direção da UE baseada na ascensão de movimentos de esquerda na Europa meridional ou na Irlanda e nas divergências entre o governo alemão e o BCE, ou entre Angela Merkel e Matteo Renzi. A principal posição política do Syriza ao chegar ao poder, de acordo com suas declarações pré-eleitorais, será de criar uma rede de segurança social ao aumentar o salário mínimo novamente para 751 euros, reestatizar direitos básicos trabalhistas, reverter as demissões de empregados do setor público, oferecer assistência imediata para 300 mil famílias abaixo da linha da pobreza, criar empregos e aumentar as aposentadorias. Não há dúvidas de que essas medidas são urgentemente necessárias.

Porém, na atual correlação de forças dentro da UE, mesmo uma sutil afrouxada nas cordas da austeridade pode não ser possível. Não é como se tal ruptura com a austeridade fosse impossível em termos financeiros; na verdade, a profundidade da crise da zona do euro, como resultado primordial do profundo e institucionalizado neoliberalismo da “integração europeia”, faz com que as elites europeias fiquem temerosas de qualquer coisa que possa parecer uma mudança de paradigmas. Isso é especialmente verdade se levar em consideração a crise da dívida na Itália e o aumento do déficit francês. Então é mais provável que durante as negociações, a UE tente empurrar para a continuidade de alguma forma de política de austeridade, ao menos para mandar uma mensagem de que ninguém pode escapar da norma. Não se pode esquecer que a Grécia ainda é dependente dos empréstimos da UE e da liquidez do BCE, assim como o fato de que o novo governo irá enfrentar uma situação de cofres públicos vazios e de necessidade de gastos urgentes. Lidar com esses problemas emergenciais, ao mesmo tempo em que tem de enfrentar as pressões da UE, é um dos desafios que o governo terá de conduzir. Além disso, não se pode esquecer que parte dos programas de austeridade, o novo limite de crédito oferecido aos gregos, não dependia somente de metas fiscais, como superávit primário (ele mesmo uma forma de austeridade), mas também na implementação de legislação e reformas neoliberais. Existirá um esforço para aplicar esse mesmo caminho diante de qualquer proposta de perdão da dívida. Nas palavras do Financial Times, “nenhuma das propostas do Sr. Tsipiras [primeiro ministro grego] para o perdão da dívida conseguirá ser ouvida ao menos que ele prometa continuar comprometido com as reformas da economia e da administração pública da Grécia.”

IV

À luz dos desafios citados acima, a necessidade de uma ruptura com a dívida, com o euro e com os tratados firmados com a UE é urgente. Parece claro que somente a interrupção ou a moratória do pagamento da dívida e sua consequente anulação podem garantir ao governo grego a capacidade de aumentar os gastos públicos para conseguir, assim, reverter as consequências da austeridade. É também óbvio que somente através da revogação do grosso das reformas neoliberais impostas à Grécia nos últimos anos será possível realizar uma política mais progressista. Tal processo levará, inevitavelmente, a um confronto contra todo o mecanismo supervisório da UE e as disposições ligadas aos engenheiros da zona do euro. Nesse ponto, a ruptura com o euro e um consequente retorno à soberania monetária permanece sendo uma necessidade premente – o ponto de partida para qualquer política progressista.

V

Além disso, é evidente que o povo lutou nos últimos tempos por muito mais do que uma “rede social de proteção”. Reverter o desastre social causado pela austeridade é o primeiro e necessário passo. Porém, a profunda crise social e política na Grécia, enquanto momento “catártico”, oferece também a possibilidade de um rumo social e político que se afaste do neoliberalismo e do consumismo impulsionado por dívidas. Isso significa que sair da austeridade não pode ser simplesmente visto como um retorno ao “crescimento”, mas como o início de um processo de experimentação com um paradigma alternativo de desenvolvimento baseado na autogestão, em novas formas de planejamento democrático e participativo e se beneficiando da experiência e da engenhosidade do povo que luta.

VI

Sem a necessária maioria parlamentar, o Syriza formou um governo com o Anexartitoi Ellines (Anel – Partido Independente Grego). Os independentes gregos são um peculiar híbrido de populismo e valores tradicionais da direita, com laços em segmentos tais como os empresários e o clero. Eles foram antiausteridade desde o momento em que se separaram da Nova Democracia. A liderança do Syriza pretendeu formar um governo com os independentes gregos logo no início. Isso faz parte de uma mudança na retórica política que vai da posição do “governo de esquerda” para uma posição de um “governo de resgate social ao redor do Syriza” marcada pela anti-austeridade. Mais do que isso, Panos Kammenos, líder dos independentes gregos e novo ministro da Defesa fez uma campanha com o seguinte slogan: “coloque-me no Parlamento para que eu possa controlar o esquerdismo do Syriza.”

Ao mesmo tempo, deve-se ressaltar que nunca fora discutida uma aliança com o Kommounistikó Kómma Elládas (KKE - Partido Comunista da Grécia), pois tal aliança poderia significar a possibilidade de uma coalizão radical anti-UE. Isso é algo que tanto o Syriza quanto o KKE não querem: o Syriza, porque tem uma posição pró-UE e pró-euro; o KKE porque tem uma posição derrotista e sectária e se recusa a ver qualquer possibilidade de mudança. Em termos econômicos, é possível encontrar um equilíbrio dentro do novo governo. De fato, pode-se dizer que em certos aspectos, os independentes gregos são mais “populistas” do que a própria liderança do Syriza. Os independentes não são anti-UE, ou anti-euro; consequentemente, não haverá divergências entre eles e o Syriza nessa frente. Acerca da questão de direitos (como por exemplo, os direitos LGBTs), a relação com a Igreja, a política imigratória, etc., deve haver tensões, mas no geral – e levando em conta a virada “realista” da liderança do Syriza – parece que, ao menos inicialmente, essa coalizão funcionou. O que também fortalece – nacionalmente quanto internacionalmente – a tentativa de apresentar um novo governo como uma coalizão anti-austeridade, não como um governo da esquerda.

VII

Sobre as demais tendências do campo da esquerda, deve-se destacar que o Partido Comunista teve um pequeno aumento nos votos (de 4,5% em junho de 2012 para 5,47% agora). Durante a campanha eleitoral este manteve um tom bastante sectário, desprezando o Syriza enquanto alternativa e apresentando a força do seu próprio partido como a única saída viável. Porém, o traço característico da linha política do KKE é a sua insistência de que ao menos que o “oportunismo” seja derrotado, não haverá processo de transformação social. Essa postura derrotista é a base da tática sectária do partido. A esquerda anti-UE, representada pela coligação Antikapitalistiki Aristeri Synergasia gia tin Anatropi-Mars (Antarsya-Mars – Frente da Esquerda Grega Anticapitalista) foi melhor em 2014 do que em 2012 (0,64% em relação aos 0,33% da eleição anterior), mas foi bastante pressionada numa eleição extremamente polarizada. Apesar de suas tentativas de fazer uma campanha de oposição de esquerda nãosectária à virada direitista do Syriza, este setor não conseguiu um resultado eleitoral condizente com seu apelo dentro dos movimentos sociais.

VIII

O período posterior às eleições trouxe importantes desafios, especialmente para a esquerda radical. O primeiro é reconstruir o movimento em seu sentido mais profundo. A mudança política e o novo sentimento de otimismo das classes subalternas precisa ser transformado em uma nova onda de lutas. Somente novas mobilizações podem exercer a pressão necessária sobre o governo do Syriza, especialmente sob suas promessas, para garantir que os servidores públicos sejam readmitidos em seus empregos, que a ERT (a rede pública de televisão) seja reaberta, para que a luta pelo rechaço às reformas neoliberais continue. Isso é importante pois restaura a confiança do povo em sua habilidade de mudar suas vidas e, com isso, exigir políticas mais radicais – um necessário contrapeso diante das pressões e chantagens de organismos internacionais.

Sem uma sociedade engajada na luta, ou seja, uma sociedade engajada nas práticas coletivas de resistência e transformação, nenhum processo de mudança social pode ser iniciado. O ciclo de lutas vivido na Grécia dos últimos anos foi um catalizador para as mudanças eleitorais que levaram à virada do eleitorado para a esquerda. De certa forma, os resultados eleitorais também foram traduções políticas das dinâmicas de protestos e contestações. É preciso uma ressurgência do movimento em termos de luta e também de aspirações, um excedente de força social necessário tanto como pressão sob o governo, como contrapeso diante da chantagem vinda da UE, mas também como catalizador de novas formas de radicalização.

IX

O debate sobre estratégia deve continuar. O desafio não é simplesmente ter um tipo de governança progressista dentro das imposições proibitivas feitas pela UE e pela zona do Euro. O desafio se coloca na articulação de uma nova dialética das demandas imediatas e das mudanças radicais, não apenas no sentido de acabar com o fardo da dívida e com o euro, mas também – e principalmente – no sentido da experiência de novas configurações sociais. Para a esquerda radical grega anti-UE o mais importante não é se colocar como uma “oposição de esquerda” ao Syriza, não importa o quão útil isso possa ser no cenário político onde toda a oposição ao Syriza virá da direita. O que importa é elaborar uma alternativa de esquerda, uma estratégia de rupturas e interrupções (incluídos aqui o neoliberalismo, o euro, as dívidas, etc.). Este é exatamente o tipo de alternativa urgentemente necessária na medida em que a estratégia do Syriza se choca com a parede da chantagem da União Europeia e com a contraofensiva das forças do capital.

X

A Grécia entrou em uma nova fase, em que se tornou possível escrever coletivamente uma nova página na história. Até aqui, este país mediterrâneo foi o campo de testes dos experimentos neoliberais mais agressivos desde o Chile de Augusto Pinochet. Agora, existe o potencial para transformá-la em um laboratório de esperanças. Isso exige confiança na força das lutas populares e a capacidade de pensar além dos marcos dominantes de pensamento. E não seria essa a real essência de uma política radical? O verdadeiro desafio agora é o povo manter as suas esperanças – a esperança de que o povo possa realmente mudar suas vidas.

27 de janeiro de 2015

A vermelho e a tricolor

Alain Badiou

Le Monde

Tradução / Hoje o mundo está totalmente tomado pela figura do capitalismo global, submisso ao governo da oligarquia internacional e subjugado à abstração financeira como única figura reconhecidamente universal.

Neste contexto desesperador montou-se uma espécie de peça histórica farsesca. Sobre a trama geral do “Ocidente”, pátria civilizada do capitalismo dominante, contra o “Islamismo”, símbolo do terrorismo sanguinário. Aparentemente teríamos, de um lado, os grupos de assassinos e indivíduos fortemente armados, acenando para garantir o perdão de Deus; e do outro, em nome dos direitos humanos e da democracia, selvagens expedições militares internacionais que destroem Estados inteiros (Iugoslávia, Iraque, Líbia, Afeganistão, Sudão, Congo, Mali...), que fazem milhares de vítimas, que chegam para negociar com os bandidos mais corruptos em busca de poços, minas, recursos alimentares e enclaves onde as grandes empresas possam prosperar.

Esta é uma farsa que transforma as guerras e as atividades criminosas na principal contradição do mundo contemporâneo, a que alcança a essência da questão. Mas hoje, soldados e policiais da “guerra ao terror”, bandos armados que reivindicam um islã mortal e todos os Estados, sem exceção, pertencem ao mesmo mundo, o mundo do capitalismo predatório.

Várias identidades falsas, cada uma se considerando superior a outra, fixam ferozmente sua dominação local em pedaços deste mundo unificado. Elas dividem o mesmo mundo real, onde os interesses dos agentes são os mesmos em toda parte: a versão liberal do Ocidente, a versão autoritária e nacionalista da China ou da Rússia de Putin, a versão teocrática dos Emirados, a versão fascista dos grupos armados... As populações de todas as partes defendem, por unanimidade, a versão que sustenta o poder local.

Isto é tão certo que o verdadeiro universalismo - aquele que reconhece o destino da humanidade na própria humanidade e, portanto, a nova e decisiva encarnação histórico-político da ideia comunista - não será um poder em escala mundial sem anular a dominação dos Estados pelas oligarquias proprietárias e seus agentes, a abstração financeira e, finalmente, as identidades e contra-identidades que assolam as mentes e necessitam morrer.

A identidade francesa: a “República”

Nesta guerra de identidades, a França tenta se distinguir com a invenção de seu totem: a “república democrática e laica” ou o “pacto republicano”. Este totem valoriza a ordem estabelecida pelo parlamento francês - pelo menos, desde a sua fundação, a saber, o massacre em 1871 de 20.000 trabalhadores nas ruas de Paris, por Adolphe Thiers, Jules Ferry, Jules Favre e outras vedetes da esquerda “republicana”.

Este “pacto republicano” ao qual aderiram muitos ex-esquerdistas, até o Charlie Hebdo, sempre suspeitou da trama de coisas assustadoras nos subúrbios, nas fábricas da periferia e nos bares escuros do subúrbio. Com inúmeros pretextos, uma República sempre povoada de prisões, de perigosos jovens mal educados que lá vivem. Na República, ocorreu também a multiplicação de massacres e de novas formas de escravidão exigidos para a manutenção da ordem no império colonial. É este império sangrento que encontrou seu estatuto de fundação nas declarações do mesmo Jules Ferry - indubitavelmente, um ativista do pacto republicano - que exaltava a “missão civilizadora” da França.

Agora, veja você, os inúmeros jovens que povoam nossos subúrbios, além de atividades suspeitas e flagrante falta de educação (estranhamente, ao que parece, a famosa “escola republicana” não tem sido capaz de fazer nada e assumir que a culpa é sua e não dos alunos), são filhos de proletários de origem africana ou vieram por conta própria da África para sobreviver e, consequentemente, na maioria das vezes, são muçulmanos. Em suma, de uma só vez, proletários e colonizados. Duas razões para desconfiar e tomar sérias medidas repressivas.

Suponhamos que você é um jovem negro ou um jovem com aspectos árabes, ou ainda, uma jovem mulher que decidiu, no sentido da livre revolta, já que é proibido, cobrir a cabeça. Bem, assim você terá sete ou oito vezes mais chances de ser parado na rua por nossa polícia democrática e, muitas vezes ser retido em uma delegacia, o que indica que se você tiver a cara de um “francês”, simplesmente, não deve ter a cara de um proletário nem de um ex-colonizado. Nem de um muçulmano.

Charlie Hebdo, em certo sentido, protestava com esses meios e costumes policiais no estilo “divertido” de piadas com conotação sexual. Nada muito novo. Lembrem-se das obscenidades de Voltaire sobre Joana d’Arc: a donzela de Orleans é um poema digno de Charlie Hebdo. Por si só, este poema sujo dirigido contra uma heroína sublimemente cristã, autoriza a dizer que as verdades e as luzes do pensamento crítico não são ilustradas por esse Voltaire medíocre.

Ele ilumina a sabedoria de Robespierre quando ele condena todos os que fazem da violência antirreligiosa o coração da Revolução e obtendo somente a deserção popular e a guerra civil. Ele nos convida a considerar que o que divide a opinião democrática francesa é, conscientemente ou não, o lado constantemente progressista e realmente democrático de Rousseau, ou então, o lado das negociatas, dos ricos e especuladores céticos e sensuais, que como o gênio do mal alojado neste Voltaire também é capaz, por sua vez, de autênticos combates.

O crime de tipo fascista

E os três jovens franceses que a polícia rapidamente matou? Eu diria que eles cometeram o que deve ser chamado de crime de tipo fascista. Eu chamo de crime de tipo fascista um crime que tem três características.

Em primeiro lugar, ele é orientado, não de maneira cega, por suas motivações ideológicas, de caráter fascista, que são estritamente identitárias: nacional, racial, comunitária, consuetudinária, religiosa... Nestas circunstancias, os assassinatos são antissemitas. Muitas vezes, o crime fascista visa publicitários, jornalistas, intelectuais e escritores tais como os assassinos representantes do lado oposto. Nas circunstancias, o Charlie Hebdo.

Em seguida, ele é de uma violência extrema, assumido, espetacularmente, dado que ele procura impor a ideia de uma determinação fria e absoluta que, no entanto, inclui de forma suicida a probabilidade de matar o assassino. Este aspecto de “viva la muerte!” de aparente niilismo, está em ação.

Em terceiro lugar, o crime visa, por sua grandiosidade, pelo seu efeito de surpresa, pelo seu lado fora da norma, criar um efeito de terror e estimular, por conseguinte, do lado do Estado e da opinião, reações descontroladas, completamente fechada em uma vingativa contra-identidade, as quais, aos olhos dos criminosos e dos seus patrões, justificarão após o fato, por simetria, o atentado sangrento. E foi isso o que aconteceu. Neste sentido, o crime fascista obteve uma espécie de vitória.

O Estado e a opinião

De fato, desde o inicio, o Estado estava envolvido na utilização desproporcional e extremamente perigosa de crime fascista, porque ele está inscrito no registro das identidades da Guerra Mundial. O “fanático muçulmano” se opõe descaradamente ao bom democrata francês.

A confusão estava no auge quando vimos o chamado do Estado, claramente autoritário, para a manifestação. Caso Manuel Valls não tivesse a intenção de capturar os fugitivos e não tivesse convocado as pessoas, uma vez que elas têm demonstrado uma obediência identitária sob a bandeira francesa, elas se esconderiam em suas casas ou vestiriam o uniforme de reservista sob o som da corneta na Síria.

Assim, no momento mais baixo de popularidade, nossos líderes têm tido a capacidade, através de três fascistas pervertidos que não poderiam imaginar tal triunfo, de aparecer diante de milhares de pessoas, também aterrorizadas pelos “muçulmanos” e alimentadas por vitaminas de democracia, o pacto republicano e a grandiosa soberba da França.

A liberdade de expressão, vamos falar sobre ela! Era praticamente impossível durante todos os primeiros dias deste caso, expressar o que estava acontecendo por outro ponto de vista que não aquele que consiste em se encantar por nossa liberdade, nossa República, em amaldiçoar a corrupção de nossa identidade por jovens muçulmanos proletários e suas filhas horrivelmente cobertas com véu, e em se preparar corajosamente para a guerra contra o terror. Ouvimos o seguinte grito dessa admirável liberdade de expressão: “Somos todos policiais”.

Na realidade é natural que o pensamento único e a submissão ao medo sejam regras em nosso país. A liberdade em geral, incluindo a de pensamento, de expressão, de ação, da própria vida, consiste, hoje em dia, em tornar-se unanimemente auxiliar da polícia para o rastreamento de dezenas de agrupamentos fascistas, para delação universal de suspeitos barbudos ou cobertos com véu, e criar uma exceção permanente nos escuros conjuntos habitacionais, herdeiros dos subúrbios onde já mataram os communards? Por outro lado, a tarefa central da emancipação, da liberdade pública, consiste em agir conjuntamente com a maioria desses jovens proletários dos subúrbios, a maioria das jovens, cobertas com véu ou não, pois isto não importa. Nos quadros de uma nova política, que não se refere a nenhuma identidade (“os proletários não tem pátria”) prepara-se uma figura igualitária de uma humanidade que finalmente se apropria do seu próprio destino? Uma política que considera de forma racional que nossos verdadeiros mestres impiedosos, os ricos governantes do nosso destino, devem ser finalmente demitidos?

Houve na França, há muito tempo, dois tipos de manifestações: as sob a bandeira vermelha e as sob a bandeira tricolor. Acredite em mim: no que concerne a reduzir a nada os pequenos grupos fascistas identitários e assassinos - aqueles que apelam para formas sectárias do Islã, a identidade nacional francesa ou a superioridade Ocidental -, não são as tricolores, controladas e utilizadas pelos poderosos, que são eficientes. Estas bandeiras são outras, as vermelhas, e que precisam voltar.

26 de janeiro de 2015

Após a vitória, o confronto ou a capitulação do Syriza

Stathis Kouvelakis

Por que o Syriza ficou aquém da maioria absoluta e as escolhas que temos pela frente.

Jacobin

Tradução / O triunfo eleitoral do Syriza trouxe esperança à esquerda radical e ao movimento de trabalhadores europeu, dando-lhe uma oportunidade imensa. Ou então, pondo a questão ao contrário: um fracasso do Syriza nesta prova pode ter consequências incalculáveis.

Algumas notas rápidas sobre as primeiras dificuldades e problemas que enfrentamos:

Antes de tudo, o Syriza esteve perto de alcançar a maioria absoluta, mas acabou por ficar à beira de o conseguir. O seu resultado final (36,3%) ficou na parte inferior da margem dada pelas sondagens à boca de urna, enquanto o resultado da Nova Democracia ficou na parte superior dessas previsões.

Por isso foi notada uma pontinha de desilusão nas sedes de campanha e em frente ao Propileu no domingo à noite. E tendo assistido a várias noites eleitorais no centro de Atenas, devo dizer que desta vez houve menos gente nas ruas do que após as vitórias do Pasok nos anos 1980 e 1990.

Mesmo que derrotar a Nova Democracia por 8.5% seja uma vitória importante, temos de explicar por que a dinâmica do Syriza não foi tão grande quanto esperávamos. Um aspeto marcante dos resultados é que enquanto o Syriza melhora as marcas de junho de 2012 e das últimas eleições europeias em quase 10%, avançou muito menos nos principais centros urbanos (Atenas e Salonica em especial), onde apenas ganhou 6%.

Enquanto em junho de 2012 o seu melhor resultado foi obtido num bastião operário, o segundo círculo “vermelho” de Pireus (à exceção de Xanthi, onde gozava de enorme apoio junto da minoria turcófona), desta vez o Syriza teve melhores resultados em sete zonas (incluindo os antigos bastiões do Pasok como Creta e o Norte do Peloponeso) do que na cintura industrial do Pireu - embora aqui também tenha subido, de 37% para 42%.

Assim, o Syriza progrediu eleitoralmente sobretudo em zonas rurais e semi-urbanas e nas cidades médias: numa Grécia em que o comportamento político é mais conservador e “legitimista”. A influência do partido no interior é agora mais homogênea, porque aparece agora como um legítimo “partido de governo”; mas faltou-lhe a dinâmica para conseguir aumentar a vantagem nas principais cidades e obter os assentos que lhe faltaram nos mega-círculos de Atenas e Salonica.

O perfil eleitoral do Syriza é agora o de um partido mais “interclassista”, sem o “desnível” de 2012: o seu apoio está claramente menos enraizado nos assalariados dos grandes centros urbanos, mesmo que a sua influência entre esta população seja significativa e que ela constitua grande parte do número total dos seus eleitores.

Este fato deve ser analisado em paralelo com os ganhos (embora limitados) do Partido Comunista, que subiu 1% em relação a junho de 2012, bem como os do Antarsya que subiu de 0.33% para 0.64%. Estas subidas registaram-se em grande parte nas grandes cidades. O Syriza sofreu certamente pequenas perdas “à sua esquerda” e acima de tudo foi incapaz de mobilizar grandes reservas de abstencionistas (houve fraca participação a nível nacional, apenas 64%).

O novo governo (cuja composição desconheço à hora a que escrevo) terá de lidar com obstáculos impressionantes. Os cofres estão vazios, e as receitas públicas estão a cair mais depressa que o previsto. Em breve se tornará evidente que o plano de financiamento inscrito no “Programa de Salonica” teve como base previsões muito otimistas (senão mesmo erradas).

O objetivo, aqui, era mostrar que o programa podia ser concretizado, por um lado dirigindo os créditos europeus (que estão reservados, alguns já destinados e cujo pagamento depende por inteiro de um acordo com a União Europeia), e por outro lado, através de maior eficácia na cobrança de receitas fiscais, sem aumento de impostos ou necessidade de aumentar os défices orçamentais.

A estratégia do governo em relação à UE também é ainda pouco clara. Após a vitória, Alexis Tsipras fez questão de tranquilizar a UE e os mercados, falando em “diálogo sincero” e “solução mutuamente vantajosa”. Não disse a palavra “dívida”.

Ontem fiquei alarmado ao ouvir camaradas a elogiar o presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi, apresentando-o como uma espécie de grande adversário da Chanceler alemã Angela Merkel ou do seu ministro Wolfgang Schäuble, e quase como um aliado do Syriza. Hoje, o único líder europeu que aparece sorridente no site do partido é Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu e membro dos sociais-democratas alemães, que pediu um encontro urgente com Tsipras.

Parece que determinados círculos do partido chegaram ao ponto de se terem convencido da verdade de slogans de campanha como “A Europa está a mudar”, no sentido de “a UE está preparada para chegar a um compromisso honroso connosco”. Mas as perspetivas quanto a isso, no melhor cenário, seria pôr a troika de lado e “negociar” (essa palavra mágica!) uma versão ligeiramente atenuada dos Memorandos com as instituições da UE.

Por último, mas não menos importante, enquanto Pannos Kammenos e o seu partido soberanista de direita Gregos Independentes (ANEL) são certamente um mal menor comparado com formações como o To Potami (cujo objetivo declarado era obrigar o Syriza a manter-se nos limites fixados pela UE e pelos Memorandos), não deixam de ser um mal. A sua participação no governo, mesmo com um único ministro, iria simbolizar o fim da ideia de “um governo antiausteridade da Esquerda”.

Ainda por cima, trata-se de um partido de Direita, que está especialmente preocupado em proteger o “coração” do aparelho de estado (será importante seguir com atenção as responsabilidades que lhe sejam atribuídas no governo). Não será nenhuma surpresa se as suas primeiras exigências forem o ministério da defesa ou do interior, embora pareça que não as irá ter.

O Syriza tem uma margem de manobra muito estreita - mas essas ambiguidades devem ficar esclarecidas em breve. Por enquanto, a sociedade permanece passiva, embora as esperanças colocadas no Syriza sejam enormes e muito concretas. Há tarefas importantíssimas no caminho das forças que estejam conscientes dos perigos que se avizinham e determinadas em defender os pontos chave do programa do partido para romper com a austeridade.

Mais do que nunca, devemos deixar bem claro que não há meio caminho entre o confronto e a capitulação. O momento da verdade está próximo.

19 de janeiro de 2015

Por uma nova historiografia marxista. Entrevista com Jairus Banaji

Entrevista com
Jairus Banaji

Entrevistado por 
Félix Boggio Éwanjée-Épée e Frédéric Monferrand



Tradução / Nombre de gardiens du temple du « matérialisme historique » considèrent que l’histoire humaine se résume à une succession d’étapes bien démarquées : esclavage, féodalisme, capitalisme. Pour ce marxisme canonisé, le capitalisme s’identifierait en outre au salariat – à une forme de travail « libre » – et exclurait les formes « archaïques » que sont l’esclavage ou le salariat bridé. Le travail de Jairus Banaji s’inscrit en faux contre ces lectures dogmatiques. Pour Banaji, les modes de production ne sont pas des mondes clos : le salariat a existé dans l’antiquité, et l’esclavage de plantation a permis l’essor du capitalisme. Une historiographie marxiste doit donner sa part à la richesse empirique des sociétés humaines et fournir des conceptualisations complexes sur les transitions historiques. Une telle démarche implique de repenser le travail d’hier à aujourd’hui, à envisager la pluralité irréductible des formes de travail qui constituent le prolétariat global. Jairus Banaji revient avec nous sur son cheminement intellectuel, de son histoire magistrale de l’antiquité tardive à ses textes d’intervention sur le fascisme en Inde.

Ao olhar para suas obras publicadas, nota-se uma ampla variedade de interesses, desde a Teoria da Forma do Valor ("From the commodity to Capital: Hegel’s dialectic in Marx’s Capital"), até as Teorias Críticas do Fascismo (Fascism: Essays on Europe and India) e a historiografia e a teoria histórica marxista (Theory as History). Devemos considerar esses diversos interesses como diferentes intervenções em campos heterogêneos de pesquisa ou há continuidade e sistematicidade em seu trabalho?

A continuidade é simplesmente a da própria teoria marxista. O materialismo histórico, tal como Marx o concebeu, era uma concepção ou campo de pesquisa integrado, não um conjunto de disciplinas separadas. É impossível pensar no capitalismo, por exemplo, em termos puramente econômicos, abstraindo do Estado; ou pensar no estado abstraindo das culturas que condicionam grandes massas de pessoas à aceitação passiva (Sartre diria “aceitação em série”) da autoridade e de todos os valores que ela pressupõe e sustenta. Se Hitler foi possível, foi porque existiu um meio que permitiu sua emergência e seu sucesso (em se tornar a “encarnação” de um “povo” moldado por décadas de sujeição ao nacionalismo, militarismo, etc.). Essa concepção da teoria marxista como uma disciplina essencialmente integrada, se quisermos chamá-la assim, é o que Sartre estava tentando mapear em Questão de Método. Portanto, vejo meu trabalho como uma intervenção unificada em diferentes níveis, em áreas de pesquisa bastante distintas. Por exemplo, para tentar ter uma ideia de onde se situava o capital indiano, eu e um colega – que agora dirige uma federação de sindicatos independentes aqui na Índia – conduzimos em conjunto cerca de 200 entrevistas com pessoas dos setores financeiro e industrial (gerentes de fundos, auditores, diretores de empresas, analistas, etc.). Mas essa intervenção precisava ser estruturada de alguma forma e essa estrutura foi oferecida pelas circunstâncias únicas em que os capitalistas se encontravam então. Eles estavam sendo forçados a discutir a forma como administram seus negócios, seu sistema de governança corporativa. Então fizemos deste o foco, mas o estudo em si e as entrevistas não se limitaram apenas a isso, nós cobrimos uma ampla gama de tópicos, incluindo a forma como as grandes empresas eram controladas (os mecanismos usados ​​para estruturar o controle dos promotores sobre as grandes empresas) e a ameaça que a entrada de empresas estrangeiras no mercado representa para o capital indiano.

Na introdução de Theory as History você estabelece uma distinção entre “relações de produção” e “formas de exploração”. Você poderia desenvolver essa distinção e explicar por que a incapacidade de distinguir entre esses conceitos condena o materialismo histórico ao formalismo?

Relações de produção são todas as relações de um dado modo de produção, incluindo aquelas que pertencem à esfera da concorrência (sob o capitalismo), um assunto que Marx nunca abordou. Marx constrói o Capital em camadas, cada uma das quais se aproxima mais da “realidade” ao incluir determinações inicialmente deixadas de lado. A exploração é o cerne do Volume I porque Marx queria mostrar como o capital emerge em primeiro lugar como uma corporificação fetichizada do trabalho e do trabalho excedente, uma forma transmutada e objetificada de trabalho vivo. Para realizar essa demonstração, Marx precisa começar com o valor, explicar o que é o dinheiro e, então, lidar com o processo de trabalho como um lugar para a produção de valor e mais-valia. Porém, reduzir a riqueza de determinações que pertencem às “relações de produção” a este nível inicial de abstração é como dizer que Marx não precisava escrever o resto d’O Capital, como se ele pudesse simplesmente ter parado no Volume Um. Mas se ele tivesse feito isso, não teríamos ideia do que ele realmente quis dizer com “capitalismo”. Deixe-me enfatizar mais um ponto aqui. Marx (inevitavelmente) identificou o capitalismo com o capitalismo moderno que estava se desenvolvendo rapidamente em sua época. Mas o capitalismo pré-moderno se desenvolveu amplamente em muitas partes do mundo, desde a China sob o Song do Sul até vastos setores do mundo muçulmano, como mostra Valensi em seu brilhante estudo de caso sobre a produção de chéchia em Tunis nos séculos 18 e 19, uma indústria dispersa e puramente doméstica, mas rigidamente organizada e controlada pelo capital. (Ver Revue d’histoire moderne et contemporaine, 1969). Esse é um protótipo do tipo de capitalismo que floresceu nas economias urbanas da idade média e até da antiguidade. Agora, uma vez que tenhamos clareza de que este não é o capitalismo moderno no sentido bem definido por Marx, nenhuma confusão é causada pela caracterização de relações econômicas desse tipo como “capitalistas”. Tampouco se afirma que essas formas de produção impulsionaram o resto da economia. O que se ganha é a consciência de que os trabalhadores têm sido explorados pelos capitalistas por períodos muito mais longos da história do que normalmente imaginamos.

No capítulo 5 de Theory as History (“The fictions of Free Labour”), você argumenta que o trabalho assalariado não representa nenhum “progresso” quando comparado à escravidão ou à servidão e você se baseia na Crítica da razão dialética de Sartre. O que a contribuição de Sartre acrescenta à uma crítica desmistificadora do trabalho assalariado em relação às que foram propostas por Marx em termos de fetichismo, ou por Lukács em termos de reificação?

Não, eu nunca argumentei que o trabalho assalariado não representa nenhum “progresso”, qualquer que seja o significado desse termo. O que eu digo no capítulo a que você se refere é que o trabalho assalariado não é menos coercitivo do que as formas anteriores de dominação do trabalho. A coerção funciona de maneira diferente e, evidentemente, é experimentada de maneira diferente, mas eu discordo da maneira superficial como o trabalho livre/não-livre é entendido e usado politicamente. Em países como a Índia, uma massa muito grande de trabalhadores informais e contratados, especialmente do campo e da comunidade Dalit, vivem uma situação que beira a escravidão, embora não sejam escravos. O progresso que o trabalho assalariado representa, pelo menos na visão ligeiramente otimista de Marx, é que, sob o capitalismo industrial moderno, ele se concentra em vastos espaços de produção e a própria produção educa os trabalhadores, tornando-os combativos e conscientes de sua solidariedade coletiva, de sua força, de seu potencial antagônico não apenas contra o capital, mas também contra a sociedade capitalista como um todo. Em sua obra, Serge Mallet empregou essa visão da classe trabalhadora [1], mas já em sua época (cerca de 100 anos depois de Marx escrever O Capital) essa abordagem o forçou a distinguir entre os diferentes “tipos” de classes trabalhadoras e a deixar de lado setores (como a indústria automobilística de massa) onde a natureza desqualificada do trabalho só permitia formas temporárias de solidariedade, que eram facilmente rompidas por não se basearem em um entendimento orgânico mais amplo da empresa e de como a empresa se inseria na sociedade. Esse foi um grande retrocesso em relação a concepção desenvolvida por Marx nos anos 1860, porque reconhece o potencial revolucionário apenas em um segmento muito particular da classe trabalhadora (trabalhadores em indústrias automatizadas), em parte sob a influência do trabalho de Naville sobre a automação e das visões evolucionistas de Touraine sobre a indústria [2], mas também, é claro, da conjuntura francesa (caracterizada especialmente pelo investimento em formação feito pelas duas grandes federações sindicais) que eventualmente culminou no Maio de 68.

No capítulo 2 (“Modes of Production in a Materialist Conception of History”) e 4 (“Workers Before Capitalism”) de Theory as History, você faz duas afirmações robustas que estão em desacordo com o que você chama de “marxismo vulgar” : você argumenta que as plantations escravistas nos Estados Unidos, longe de incorporarem uma relíquia de um chamado “modo de produção escravo”, eram essencialmente capitalistas, de forma que o modo de produção capitalista não pode ser definido exclusivamente pelo trabalho assalariado. No capítulo 4, você de fato argumenta que o trabalho assalariado era na verdade uma forma difundida de exploração do trabalho na Roma Antiga e deu origem especificamente às demandas e à organização dos trabalhadores assalariados. Para você, então, o que caracterizaria o modo de produção capitalista?

O capitalismo é caracterizado pelo impulso de acumular capital, independentemente da forma específica de dominação do trabalho e da extração do trabalho excedente. Para o capitalista individual, não faz diferença se o trabalhador é livre ou não, se trabalha em casa ou em uma fábrica e assim por diante. Essas decisões são puramente econômicas e técnicas; relacionam-se à questões como custos de produção, disponibilidade de mão-de-obra e se determinado tipo de trabalhador (feminino, domiciliar) é mais adequado para determinado tipo de produção. Neste nível (o do capital individual), até mesmo a construção de “competências” é uma questão subjetiva. No entanto, do ponto de vista do capital social total, a mobilidade do trabalho é obviamente importante porque os capitalistas competem por trabalhadores e o mercado deve permitir que esse processo de concorrência funcione de forma eficiente. A escravidão no mundo moderno (escravidão Atlântica) foi uma criação puramente capitalista, mas o tipo de capitalismo envolvido era, sobretudo, o que Marx chama de capital mercantil. Os fazendeiros do sul dos Estados Unidos estavam, de qualquer forma, em grande dívida com as instituições financeiras do norte, assim como as plantations escravistas cubanas eram inseparáveis ​​das casas mercantis de Havana e dos bancos e corretores estadunidenses aos quais estavam vinculadas.

Recentemente, você se concentrou na análise da financeirização do capitalismo. Para isso, você examinou duas fontes teóricas distintas: em primeiro lugar, os escritos de Marx sobre as Guerras do Ópio e, em segundo lugar, a noção de serialidade de Sartre. Quais são as vantagens e os limites dessas duas abordagens para analisar esse fenômeno contemporâneo?

Minha recente conferência sobre a crise financeira [3] pretendia retificar uma ênfase desproporcional e exagerada presente nos recentes escritos marxistas sobre o capital “produtivo” como se este fosse uma espécie de capitalismo “puro”. É uma tentativa de restabelecer o equilíbrio entre finanças e produção. Isso é feito, em parte, dando ao conceito de “capital fictício” um lugar central na análise. Quando chegamos ao Volume Três do Capital, percebemos que o capitalismo não pode funcionar sem crédito, o crédito é seu fundamento essencial, como nos diz Marx. Uma vez que estejamos convencidos desse ponto, temos que ser capazes de integrá-lo em todas as análises posteriores, e não ignorá-lo! Se o crédito é a base das economias capitalistas modernas, então os mercados financeiros têm um lugar central na acumulação e temos que ser capazes de entender como funcionam. Quanto à noção de serialidade de Sartre, parece-me um recurso que tem o potencial de iluminar de forma rica e sutil a forma como o Estado e o capital conseguem dominar a sociedade, contribuindo assim para a teoria marxista de Estado. Como podemos hoje isolar o capital do Estado ou o Estado da mídia ou a mídia do capital? Quando se admite essas interdependências, toda a análise torna-se mais complexa e precisamos de novas categorias para estruturá-la. Nós temos, de fato, uma teoria marxista do estado capitalista moderno? Os dois estados capitalistas mais poderosos do mundo atual (China e EUA) surgiram de histórias radicalmente diferentes. Isso não impede que ambos sejam materialidades específicas do capital. Quando digo específicas quero dizer simplesmente que a dominação é exercida de maneiras diferentes, de modo que a conexão entre política, ideologia, cultura e capital não reflete um modelo único.

Quando se enfatiza, como você o faz, a variedade de formas de exploração e relações de produção que o capitalismo pode abranger e se nega qualquer validade histórica ao modelo clássico de sucessão de modos de produção (comunismo primitivo, escravidão, feudalismo, capitalismo, socialismo), como teorizar rupturas e saltos qualitativos na história? Em outras palavras: como pensar a transição quando se abandona qualquer tipo de historicismo? E que conclusões estratégicas podemos tirar dessa multilinearização do materialismo histórico?

O que eu nego é uma concepção excessivamente rígida da sucessão dos modos de produção. Ainda que nos limitemos à história da Europa, a “transição” entre o mundo antigo e a idade média foi muito mais complexa do que uma simples passagem da escravidão para a servidão. Houve séculos inteiros nas regiões ocidentais do antigo império romano em que a força de trabalho rural era composta por trabalhadores que não podem ser caracterizados nem como escravos nem como servos, mas que estavam sujeitos a novas formas de dominação consideravelmente coercitivas. Descrevê-los como “transitórios” é injetar uma pesada carga de teleologia em nossa leitura da história. Foi o que Marx disse em sua famosa resposta a Mikhailovsky [4]. E quanto aos setores do Oriente Próximo e do Mediterrâneo que foram conquistados pelos exércitos muçulmanos entre meados e o fim do século VII e o início do século VIII (na Espanha)? Aqui o modelo para os historiadores marxistas é o trabalho de Manuel Acien Almansa, que rejeitou as caracterizações tradicionais e procurou repensar as formações sociais islâmicas de uma maneira completamente original, influenciada, em parte, pela obra de Guichard. A principal vítima de seu empreendimento revisionista é a ideia simplista de “feudalismo” como uma categoria histórica abrangente com uma universalidade quase tão grande quanto a do capitalismo. Esse não é o caso e o tecido da história é muito mais rico, mesmo de um ponto de vista estritamente materialista que trata essencialmente da história social e econômica. É claro que existem “transições”, mas elas não são necessariamente governadas por leis definidas por Marx a respeito do capitalismo e certamente não devem dar um enquadramento teleológico à maneira como entendemos a história ou o materialismo histórico. Para dar um exemplo óbvio, como caracterizamos as importantes mudanças que transformaram tanto a economia soviética quanto a chinesa nas últimas décadas? Se ‘transição’ é uma categoria fundamental de análise, de que tipo de transições estamos falando nesses casos?

Se você leva em consideração uma diversidade de caminhos de transição, o que diferencia sua abordagem de uma noção althusseriana de “articulação dos modos de produção” (uma noção que você parece rejeitar)? E como exatamente você caracteriza a União Soviética e a China? A noção de capitalismo de Estado é relevante nesse caso?

Ao enfatizar a pluralidade de “transições” que caracteriza toda totalização histórica (por exemplo, a emergência do capitalismo que assume formas tão variadas em tempos e lugares diferentes), estou simplesmente me referindo a trajetórias que não podem ser reduzidas a qualquer conjunto de “leis”. Eu certamente não acho que isso tenha algo a ver com “articulação” no sentido estruturalista. Althusser é muito melhor em Aparelhos Ideológicos de Estado do que quando se debruça sobre “modos de produção”. Sobre esse último ponto, ele mal consegue expressar banalidades (‘unidade das forças produtivas e relações de produção’) como as que eram difundidas nos círculos stalinistas do pós-guerra. É surpreendente que o máximo que ele consegue dizer sobre as relações capitalistas de produção é que elas são “simultaneamente” relações capitalistas de exploração. Althusser sequer investigou mais a fundo o sentido desta expressão (“simultaneamente”)! Claramente, ele sentia que pensar em termos de “determinações” do capital seria escorregar para uma totalidade expressiva e conceder demasiadamente aos hegelianos . Mas quando Althusser fala que são relações “simultaneamente” de exploração, ele está efetivamente engajado na complexidade que perpassa todos os três volumes d’O Capital. O principal sintoma da fraqueza teórica de Althusser neste ponto é que ele não diz nada sobre a acumulação, não consegue enxergar o capitalismo de uma forma dinâmica (como leis de acumulação e concorrência). Isso é irônico porque, quando passa a lidar com o Estado, ele faz da reprodução a categoria central. Como eu disse, ele é muito bom quando se debruça sobre o Estado e os aparelhos de Estado e temos muito a aprender com essa parte do seu trabalho.

Quanto à União Soviética e à China, sempre as considerei como “capitalismo de estado”, mas o fiz por convenção. O que eu quero dizer com isso é que essas sociedades estavam tão distantes de ser “pós-capitalistas” de qualquer tipo, quanto mais de um tipo que se movesse em direção ao comunismo (sociedades de “produtores associados”) que pode-se concordar em usar “capitalismo de estado” como a expressão menos apologética para descrever essas sociedades. Mas, embora essa expressão seja válida em um sentido bastante amplo, não é suficiente para compreender essas sociedades. Se o Estado constitui um único capitalista (ou uma multiplicidade de capitalistas combinados), o capitalista também deve ser pensado como um “Estado”. É este segundo aspecto que pode explicar a trajetória das economias capitalistas resultantes das chamadas revoluções “traídas”. A China é particularmente complexa, mas tanto a Rússia quanto a China têm uma longa história de dominação do Estado sobre a sociedade. O que parece estar acontecendo em escala mundial hoje é o último impulso catastrófico do capital para subjugar completamente o campo, não apenas eliminar o campesinato (os vilarejos estão se desintegrando rapidamente na maior parte do mundo, a Índia é um bom exemplo disso), mas transformar o próprio campo em um “momento” da história do capital. Na China isso tem assumido uma forma particularmente marcante porque o Estado é a principal agência do capital nesse ataque, no que Pasolini chamou de “desaparecimento dos vaga-lumes”[5]. O cinema de Jia Zhangke (Still Life, A Touch of Sin, etc.) explora de forma absolutamente impressionante esse movimento colossal de “acumulação primitiva”, e isso ocorre, em parte, porque ele captura esses momentos em um estilo semi-documental. Você adquire uma noção muito melhor de como é o capitalismo na China de hoje, após várias décadas de acumulação e repressão do Estado, do que em muitos textos que simplesmente reiteram os mais rudimentares lugares-comuns da teoria. Nós simplesmente não possuímos categorias para confrontar um capitalismo dessa magnitude!

Qual é a contribuição do Marxismo Ocidental (Marcuse, Reich, Sartre) para o desafio contemporâneo do fascismo?

Absolutamente essencial. A esquerda não tem uma teoria coerente e poderosa do fascismo, muito menos um meio de combatê-lo politicamente. O trabalho de Reich chamou a atenção para as sinergias entre autoritarismo e apoio aos movimentos fascistas, localizando-os tanto no nível psicológico quanto cultural e vendo-os como estruturas essencialmente inertes (formas do que Sartre chamaria de “prático-inerte”). Hoje, na Índia, pode-se ver como massas de jovens desenraizados, que foram totalmente ignorados pelos partidos de esquerda, gravitam cada vez mais em torno da extrema-direita. A cultura que os informa está repleta das idéias e formas de comportamento mais violentas e autoritárias (casta, sexismo, comunalismo) e de uma dose massiva de repressão sexual que distorce a vida da juventude, de homens e mulheres. A obra de Sartre nos fornece os meios para analisar os modos de dominação que agem na ascensão do fascismo e seu poderoso controle sobre as “massas”. A dominação das massas é a base de todo regime fascista, mas a teoria marxista mal começou a analisar como ela funciona e como pode ser rompida.

Qual é o papel estratégico da teoria na esquerda hoje (na Índia e talvez em outros lugares, na Europa)?

A teoria é fundamental, indispensável, mas ela não cairá do céu. Ele só poderá florescer quando uma nova cultura política e um novo movimento surgirem à esquerda da esquerda, dando-lhe a oportunidade de se renovar (abandonar o escolasticismo, a estratificação acadêmica, o empobrecimento dogmático, etc.). Uma esquerda que não leva a teoria suficientemente a sério, que não se imbui dela ao expandir suas fronteiras, será, ao contrário, incapaz de fazer nascer uma cultura e um movimento revolucionário de um novo tipo. Cada um dos dois aspectos (a renovação da esquerda e a da teoria) envolve um ao outro – e, entre eles, coloca-se o problema da “estratégia”. Mas a esquerda radical não será capaz de se recompor por um simples voluntarismo. A condição fundamental para que ela avance e se torne uma força em escala global está no surgimento de novas classes trabalhadoras e no fato de que novas camadas da classe trabalhadora se conscientizem de seu poder coletivo, o que significa ser uma classe social que aspira a transformar a sociedade. O capital fez o que pôde para impedir que essa condição se materializasse, tendo aprendido com o pós-guerra e as lutas desse período (até o final dos anos 60) como o malthusianismo que Sartre descreveu na Crítica da razão dialética (sobre a burguesia francesa do período entre guerras) era de fato sua melhor opção, mesmo que isso significasse quebrar os estados de bem-estar, romper o contrato social e atomizar a produção a tal ponto que as economias de escala desapareceram. A classe trabalhadora que Marx descreveu n’O Capital existe, mas ela é muito menos potente e concentrada hoje do que nos tempos de Marx. O otimismo do Manifesto Comunista repousa no fato de que o capital não desempenha nenhum papel na configuração da produção conforme seus próprios interesses, ou seja, para evitar o confronto com uma classe trabalhadora unificada por locais de trabalho. Portanto, se a produção permanece central para as estratégias da esquerda radical, é por aí que devemos começar. Que formas devem assumir os “sindicatos” de amanhã? Como os desempregados participarão de um movimento organizado? Como organizar a solidariedade quando a massa de assalariados está tão fragmentada e dividida?

Notas:

[1] VerJairus Banaji, "From the commodity to Capital: Hegel’s dialectic in Marx's Capital" in Diane Elson (dir.), Value: The Representation of Labour in Capitalism. Londres, CSE Books, 1979; Fascism: Essays on Europe and India Gurgaon, Three Essays Collective, 2013 et Theory as History: Essays on Modes of Production and Exploitation, Chicago, Haymarket, 2011.

[2] Ver L. Valensi, "Islam et capitalisme" in Revue d’histoire moderne, Tome XVI, 1969.

[3] Ver Serge Mallet, La nouvelle classe ouvrière, Paris, éditions du Seuil, 1963.

[4] Ver Pierre Naville, Le nouveau Léviathan, 1957-1989, 6 volumes ; et Alain Touraine, La société post-industrielle. Naissance d’une société, Paris, Denoël, 1969.

[5] Conferência disponível em Jairus Banaji, "Seasons of Self-Delusion: Opium, Capitalism and Financial Markets (2012 Deutscher Memorial Lecture)", Historical Materialism, vol. 21, n° 2, p. 3-19.

[6] Ver Karl Marx, Œuvres II, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1968, p. 1552-1555.

[7] Sobre essa metáfora pasoliniana ver Georges Didi-Huberman, La Survivance des lucioles, Paris, éditions de Minuit, 2009.

9 de janeiro de 2015

O massacre do Charlie Hebdo

Tariq Ali



Tradução / Foi um acontecimento horrível. Foi condenado na maior parte do mundo, e de forma particularmente pungente por muitos cartoonistas. Quem planejou esta atrocidade escolhera cuidadosamente o seu alvo. Sabia que um tal ato suscitaria o máximo horror. O efeito que procuravam era qualitativo, não quantitativo. A resposta que obtiveram não os teria surpreendido, nem lhes teria desagradado. O mundo dos descrentes não tem qualquer interesse para eles. Ao contrário dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles não estão nem legal nem teologicamente mandatados para importunar livreiros ou impressores, para banir livros ou para torturar autores, e por isso vão um passo adiante e decretam execuções.

E que se passa com os soldados rasos? As circunstâncias que atraem jovens homens e mulheres a esses grupos são criadas pelo mundo ocidental que habitam – o que constitui por si mesmo um resultado de longos anos de ocupação colonial nos países dos seus antepassados. Sabemos que os irmãos parisienses Chérif e Said Kouachi eram cabeludos inaladores de marijuana e outras substâncias até ao momento em que (tal como os bombistas de 7 de julho na Grã-Bretanha) viram reportagens da guerra do Iraque e a matança a sangue-frio de cidadãos iraquianos em Fallujah.

Procuraram apoio na mesquita. Aí foram radicalizados por residentes da linha dura, para quem a guerra ocidental contra o terror criara uma oportunidade de ouro para recrutar e hegemonizar os jovens, tanto no mundo muçulmano como nos ghettos da Europa e da América do Norte. Enviados primeiro para o Iraque para matar americanos e mais recentemente para a Síria (com a conivência do Estado francês?) para derrubar Assad, estes jovens foram ensinados a utilizar armas de forma eficaz. De regresso a casa prepararam-se para dar uso a este conhecimento contra aqueles que acreditavam estarem a atormentá-los nestes tempos difíceis. Eles eram os perseguidos. Charlie Hebdo representava os perseguidores. O horror não deve impedir-nos de constatar essa realidade.

O Charlie Hebdo não ocultara a sua intenção de continuar a provocar os fiéis muçulmanos tomando o profeta como alvo. Muitos muçulmanos ficaram irritados com isso, mas ignoraram o insulto. O jornal tinha reproduzido as caricaturas de Maomé publicadas em 2005 pelo diário dinamarquês Jyllands-Posten – caricaturas que o representavam como um emigrante paquistanês. Esse jornal dinamarquês reconheceu que nunca publicaria nada de semelhante representando Moisés ou os judeus (embora talvez já o tivesse feito: a verdade é que publicou artigos apoiando o III Reich), mas o Charlie Hebdo reivindica para si próprio a missão de defender os valores da laicidade republicana contra todas as religiões. Atacou ocasionalmente o catolicismo mas praticamente nunca se meteu com o judaísmo (ainda que os numerosos ataques de Israel contra os palestinos lhes tivessem proporcionado muitas oportunidades) e concentrou a sua troça no Islã. O laicismo francês parece integrar tudo, desde que não seja islâmico.

Em França, os ataques ao Islã têm sido incessantes, com o novo romance de Michel Houellebecq, “Submissão” (a palavra islã significa submissão) a ser a munição mais recente. Prediz o país governado por um presidente oriundo de um grupo a que chama Fraternidade Muçulmana. Charlie Hebdo, não devemos esquecê-lo, publicava uma caricatura de Houellebecq na capa do dia em que foi atacado. Defender o seu direito de publicar, fossem quais fossem as consequências, é uma coisa; mas sacralizar um jornal satírico que ataca com frequência aqueles que são vítimas de uma islamofobia galopante é tão insensato como justificar os atos de terror de que foi vítima. Alimentam-se mutuamente.

A lei francesa prevê a suspensão das liberdades perante a ameaça de perturbação da ordem ou de violência. Esta faculdade fora invocada antes para proibir intervenções públicas do comediante Dieudonné (bem conhecido pelas suas piadas anti-semitas) e para impedir manifestações de apoio à Palestina – a França é o único país ocidental com tal conduta. Que tais actuações não sejam encaradas como problemáticas pela maioria dos franceses fala eloquentemente por si. E não são apenas os franceses: em lugar nenhum da Europa se realizaram vigílias à luz de velas ou concentrações de massas quando foi revelado que os prisioneiros muçulmanos entregues aos EUA por numerosos países da UE (com os valentes polacos e a Grã-Bretanha governada pelos trabalhistas na primeira linha) tinham sido torturados pela CIA. E o que aqui está em causa é algo mais do que uma sátira.

A elegância dos liberais laicos que falam em defender a liberdade até à morte apenas tem comparação com a dos liberais muçulmanos que repetem incessantemente que o que sucedeu nada tem a ver com o Islã. Existem diferentes versões do Islã (a ocupação do Iraque foi deliberadamente utilizada para desencadear a guerra entre xiitas e sunitas que ajudou a gerar o Estado Islâmico); não faz sentido pretender-se falar em nome de um “verdadeiro” Islã. A história do Islã é desde o início repleta de lutas de fações. Tanto as correntes fundamentalistas no interior do Islã como as invasões do exterior foram responsáveis pela elisão de muitos avanços culturais e científicos no período medieval tardio. Essas diferenças continuam a existir.

Entretanto, Hollande e Sarkozy anunciaram ir encabeçar uma marcha de unidade nacional (Cameron também participa). Tal como me escreveu um francês "A ideia de que Charlie Hebdo viesse a provocar uma 'união sagrada' não pode ser senão uma daquelas ironias da história que deixaria o mais cínico libertário inconformista pós-68 engasgado de incredulidade".

6 de janeiro de 2015

Esquerda ressurgente da Irlanda

O movimento anti-austeridade irlandês está mudando o que é politicamente possível na ilha.

Michael Lee-Murphy


Protesto de novembro contra as cobranças de água em Dublin. William Murphy / Flickr

Tradução / Nos últimos meses de 2014, pessoas irlandesas tomaram as ruas em números raramente vistos no país. No dia 9 de dezembro, organizadores disseram haver 100 mil pessoas se manifestando em Dublin, mais de 2% da população da República da Irlanda, de 4,5 milhões de habitantes.

O ímpeto para o maior protesto desta geração – e talvez o maior desde a conquista da independência – é o plano do governo irlandês de instituir novas tarifas sobre a água, que poderão variar entre €176 e €500 [entre 550 e 1600 reais], dependendo do tamanho da residência. As manifestações estão criando condições para uma mudança na política irlandesa. O governo de centro-direita está finalmente se sentindo pressionado, e a esquerda parece ganhar força.

Membro do chamado grupo de países PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, isto é, os países que mais sofrem sob o jugo da trindade União Europeia (UE), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu (BCE) e sob a virtual suspensão da democracia ao longo dos últimos seis anos –, a Irlanda, até o momento, havia sido o único deles a não conseguir se opor à austeridade.

A resistência frequentemente assumiu a forma de ação direta. A nível local, comunidades se uniram para repelir empresas contratadas para instalar hidrômetros em suas propriedades. Um vídeo demonstrando como sabotar os hidrômetros, disponibilizado pelo partido socialista éirígí, já foi visualizado mais de setenta mil vezes. (Um número impressionante, se levarmos em conta a população do país).

A demografia dos protestos traz representantes de diferentes setores da sociedade irlandesa. Os estudantes universitários com seus vinte e poucos anos eram apenas adolescentes quando ocorreu o crash e se iniciou a austeridade. Mas as gerações mais velhas, que lutam para pagar as contas e veem seus filhos abandonando o país por falta de emprego, também estão envolvidas.

Na dianteira do movimento está a campanha Right2Water [Direito à Água], composta por sindicatos, pelo Sinn Féin e outros partidos de esquerda menores. O Sindicato de Serviços, Industrial, Profissional e Técnico [SIPTU, na sigla em inglês], maior sindicato da Irlanda, inicialmente se recusou a apoiar as manifestações, mas acabou se unindo a elas após os protestos de novembro.

Boa parte da ira contra as novas tarifas foi alimentada pela revelação do exorbitante valor gasto na criação da Irish Water, a empresa público-privada que administra o serviço de água. À medida que se descobria mais sobre as tramoias envolvendo a criação da Irish Water, os anos de frustração silenciosa pela austeridade finalmente foram deixados para trás.

Durante os anos 90, a Irlanda foi apelidada de "Tigre Celta" e serviu como modelo do que a estrutura econômica neoliberal poderia fazer pela taxa de crescimento de um país. Os setores de desenvolvimento e imóveis da Irlanda, que cresciam rapidamente, causavam inveja no restante da Europa.

De repente, tudo caiu por terra. A história por trás do crescimento é bastante familiar. A expansão da economia veio às custas de empréstimos bancários irresponsáveis em hipotecas e, em seguida, na especulação com imóveis, usando capital emprestado do mercado internacional. A história da quebra também é conhecida. Os bancos irlandeses haviam concedido mais títulos do que podiam e, quando o colapso do Lehman Brothers, em 2008, impactou o mercado de dívidas europeu e os bancos de todo o continente quiseram seu capital de volta, os bancos irlandeses não tinham dinheiro para pagar.

O que distingue a crise irlandesa das crises espanhola ou grega é o tamanho da dívida em relação ao tamanho da economia, assim como a forma como o Estado lidou com essas obrigações. O Estado cobriu todo o débito sem que sequer houvesse votação no Parlamento ou uma reunião de gabinete, transformando uma crise de bancos privados em uma crise de dívida pública.

Quando o Estado irlandês não conseguiu cobrir os débitos dos bancos e dos especuladores, representantes do FMI, da União Europeia e do BCE foram até Dublin para um típico ajuste estrutural: diminuição do salário mínimo, cortes de gastos públicos e retirada de capital do setor público. A Irlanda foi de colônia britânica a polo de fluxo de capitais ao estilo Las Vegas, em seguida, de volta à condição de servidão sob o capital europeu, tudo isso em menos de um século.

No entanto, o povo irlandês simplesmente aceitou carregar seu fardo. Há algumas teorias que tentam explicar o motivo. Alguns dizem que o fracasso econômico, a emigração e as altas taxas de desemprego são simplesmente o status quo na Irlanda, desde pelo menos o período da Grande Fome em meados do século 19. Outros dizem que os mais jovens se mudaram para a Austrália ou para a América do Norte, dificultando qualquer insurgência. Em todo caso, disseram aos irlandeses que eles deveriam se comportar, o que eles de fato fizeram.

Esta obediência incondicional desapareceu no fim de 2014, com as enormes mobilizações contra os impostos sobre a água. Os protestos parecem ter pegado os partidos governantes de surpresa. Leo Varadkar, ministro da Saúde e membro de um partido de direita disse em dezembro que se sente "realmente incomodado" pelo fato de as pessoas estarem protestando contra os impostos sobre a água. Ele diz que há questões maiores em jogo.

Em novembro, Joan Burton, Tánaiste (vice-primeira-ministra) trabalhista, ficou presa em seu carro durante um protesto em Dublin por várias horas. Para Burton, os manifestantes pareciam fascistas – um comentário curioso vindo de uma política em coalizão com o Fine Gael, um partido que nasceu do breve flerte irlandês com o fascismo.

Parte da confusão vem do fato de que os políticos insistem que a Irlanda está "em recuperação". O desemprego, que chegou a 15% no início de 2012, está agora em 10,7%. Uma série de pesquisas em dezembro deixou todos ainda mais perplexos. Os trabalhistas estão com 5%, enquanto os independentes e partidos menores chegam ao total de 30%.

O outro grande vencedor foi o Sinn Féin, partido outrora conhecido como "braço político do Exército Republicano Irlandês". A ascensão do partido ao longo dos últimos anos na República da Irlanda foi quase meteórica.

Nas eleições parlamentares de 2011, o Sinn Féin passou de 4 a 14 cadeiras no congresso Dáil, de 166 cadeiras, e as pesquisas atuais o apresentam como o mais popular ou segundo mais popular partido no país. (Mas as eleições de 2011 também proporcionaram a substituição do Fianna Fáil, partido de centro-direita que deteve o poder ao longo da maior parte da história da república, ser substituído pelo Fine Gael e pelos Trabalhistas.)

Enquanto parte da população da República da Irlanda ainda associa o Sinn Féin com a violência dos conflitos na Irlanda do Norte, é a plataforma econômica do partido, e não sua luta por uma Irlanda unida, o que atrai a atenção. Um dos quatro maiores partidos, ele é o único que não está comprometido com a implementação da agenda de austeridade da troika. O "orçamento alternativo" do partido em 2015 clama por mais investimentos em moradias populares, saúde, educação e outros setores-chave.

No entanto, foi apenas após os grandes protestos contra os impostos sobre a água – bem como uma eleição parlamentar suplementar em outubro, na qual o partido perdeu um assento para o candidato da Aliança Anti-Austeridade – que o Sinn Féin começou a se pronunciar contra os impostos. Agora firmemente comprometido, o presidente do partido, Gerry Adams, discursou no protesto de dezembro para um público entusiasmado.

As próximas eleições irlandesas ocorrerão neste ano ou no próximo, e a vitória do Sinn Féin alteraria radicalmente o panorama político. Mesmo as pesquisas que mostram que o partido é o mais popular na República da Irlanda seriam impensáveis há dez anos.

Várias organizações à esquerda do Sinn Féin também estão ativas. Ainda que pequenas, funcionam como uma espécie de âncora para o Sinn Féin, forçando o partido a assumir uma posição firme contra a austeridade e os impostos sobre a água. Por exemplo, Paul Murphy, da Aliança Anti-Austeridade – que derrotou o candidato do Sinn Féin em 2014 – é uma das vozes no Dáil e nas ruas contra os impostos sobre a água.

A Irlanda do Norte é uma história completamente diferente.

Nos seis condados do estado norte-irlandês, o Sinn Féin já está no governo. Como provisão do Acordo de Belfast, de 1998, o partido católico deve compartilhar o governo com o partido protestante. O Sinn Féin se encontra em uma coalizão com o Partido Unionista Democrático, de direita; os líderes dos dois partidos agem como coexecutivos. Às vésperas do Natal, os dois partidos concordaram em implantar uma versão local pouco alterada das medidas de austeridade de David Cameron, primeiro-ministro do Reino Unido.

A fim de manter certo grau de autonomia governamental em relação a Londres e conservar a instituição da divisão do poder, criada durante o Processo de Paz, o Sinn Féin teve de se reposicionar como centrista, e agora implementa um plano para o corte de subsídios sociais e para a "redução de custos administrativos".

Em Dublin, o Sinn Féin luta contra cortes e reduções. Em Belfast, ele os implementa. O partido, antes ligado ao grupo que quase matou Margaret Thatcher, hoje coloca em prática as políticas de austeridade que são o principal legado de Thatcher.

Não está muito claro quão palatável os eleitores da República da Irlanda acham a associação histórica entre o Sinn Féin e o IRA. No último ano, quando ocorreram os protestos, isso parecia não importar muito. A cantora irlandesa Sinead O’Connor recentemente solicitou sua entrada no partido e, ao mesmo tempo, pediu a renúncia da atual liderança.

Se o Sinn Féin poderá se tornar o veículo partidário para a luta contra a austeridade depende de se ele poderá confrontar seu passado – o que não é fácil em um país com uma fronteira tão odiada, que também divide o próprio partido. A versão sulista teria de se deslocar para a direita para se adequar à versão do norte? Ou seria o contrário? O passado é o que segura o partido? E quanto à questão da unidade irlandesa? Para muitas pessoas, esta ainda é uma meta muito importante, na qual eles não veem qualquer progresso.

Em todo caso, o Sinn Féin deverá desempenhar um grande papel na política da ilha ao longo dos próximos anos. A Irlanda está observando de perto os desdobramentos da eleição grega. Uma vitória do Syriza na Grécia seria boa notícia para a crescente esquerda anti-austeridade irlandesa, e poderá dar forças a quem se encontra à esquerda do Sinn Féin. Estes partidos e movimentos continuarão a desempenhar um papel importante na prevenção de uma guinada à direita.

Até o fim de janeiro, haverá ainda outro grande protesto contra o aumento dos impostos sobre a água. Os hidrômetros ainda estão sendo desativados. Talvez, inspirando-se nos britânicos, o não-pagamento em massa seja o próximo passo. Mas lutar contra a austeridade e os impostos não deveria ser visto como o objetivo final. Avançar na frente principal significaria construir uma esquerda irlandesa capaz não apenas de impedir os impostos sobre o consumo de água, mas o próprio capitalismo.

Colaborador

Michael Lee-Murphy é repórter e escritor freelancer.

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