25 de fevereiro de 2014

A Venezuela está em chamas?

Como os protestos anti-governo continuam na Venezuela, Mike Gonzalez argumenta que somente um aprofundamento da revolução bolivariana pode salvá-la.

por Mike Gonzalez

Jacobin

Créditos: Gaz/Flickr.

Tradução / A imprensa e mídia globais mostrou imagens de uma Venezuela em chamas. Ônibus queimando, demonstrações de raiva, prédios públicos cercados. Mas essas imagens não são explicadas ou colocadas em um contexto e, com isso, as pessoas assumem que não passa de um motim, uma rebelião jovem contra a crise como as na Grécia e Espanha.

A realidade é muito diferente e mais complexa. O país, no fim das contas, é uma sociedade que declarou guerra ao neoliberalismo 15 anos atrás.

Caracas, onde essa série de eventos se iniciou, é uma cidade dividida. Sua parte leste é de classe média e próspera; ao oeste sua população é mais pobre. A divisão política reflete exatamente a divisão social. Leopoldo López, que tem sido o líder dessa nova fase violenta da oposição ao governo de Nicolas Maduro, foi prefeito de um dos distritos do leste.

Junto com outra proeminente anti-chavista de direita, Maria Corina Machado, López havia emitido uma chamada para uma reunião pública, no último domingo, afim de exigir a queda do governo. O Dia da Juventude, 12 de fevereiro, foi munição suficiente para levar os estudantes às ruas.

A maioria das barricadas queimadas foi construída em áreas da classe média. E os estudantes que as construíram vieram tanto de Universidades particulares quanto de estatais, que excluíram amplamente os estudantes pobres. Não havia quase nada acontecendo nas áreas mais pobres no oeste do país.

Ultimamente, o caráter classista dos protestos se fez claro. O novo sistema de ônibus do governo que oferece viagens boas e baratas, foi atacado. 50 deles só na sexta. A Universidade Bolivariana, que oferece maior educação para aqueles excluídos do sistema universitário, foi sitiada na sexta – mesmo com a fracasso dos protestos em destruí-la. Em diversos locais, médicos cubanos que dirigem o sistema de saúde "Barrio Adentro," foram atacados. Em um curioso acontecimento, uma escultura do arquiteto comunista Fruto Vivas, localizada na cidade de Barquisimeto, está sendo defendida por Chavistas depois de uma ameaça da oposição de destruí-la.

Maduro e seu gabinete responderam aos acontecimentos denunciando o teor violento crescente nas confrontações organizadas por fascistas e apoiadas pelos EUA. Existem, certamente, extremistas envolvidos e comprometidos em desestabilizar a situação. Dentre eles estão os paramilitares ligados ao tráfico de drogas, os quais a presença aumentou muito neste pais demasiadamente armado.

Mas por que a direita escolheu este momento em particular para tomar as ruas? Em parte, é uma resposta ao que parece ser uma fraqueza do governo Maduro, e especialmente do próprio presidente. Não é segredo que por trás dessa fachada de unidade governamental existe uma luta pelo poder entre os muito ricos e os grupos de influência dentro do governo – luta essa que se intensificou meses antes da morte de Chávez.

A presença militar no governo cresceu dramaticamente, e são amplamente controlados pelo grupo de Diosdado Cabello. O líder da corporação de petróleo e vice-presidente de economia, Rafael Rodriguez, tem um enorme poder econômico nas mãos.

Ao mesmo tempo, existe uma luta pelo poder dentro da direita. Todos os lideres proeminentes, incluindo Leopoldo López, Cristina Machado e Capriles, vêm das partes mais ricas da burguesia. Mas estão competindo. López e Machado estão em busca de um tipo de “golpe leve”: desestabilização econômica somada a uma mobilização contínua nas ruas para aprofundar as fraquezas do governo.

Capriles, no entanto, hesitava em apoiar os protestos, argumentava sobre um “governo de unidade nacional,” o qual Maduro aparentava legitimar. Há algumas semanas atrás, Maduro conversou com um dos capitalistas mais ricos do país, Mendoza, e outros setores da burguesia expressaram seu apoio para com o presidente. E essa estratégia tem o apoio de figuras importantes dentro e à margem do governo.

Contra esse passado, a posição do governo chavista tem sido de pedir "paz" – o slogan ecoou pelo enorme número de venezuelanos que se mobilizaram atrás de Maduro. O canto "eles nunca voltarão" é muito significante. Eles reconhecem nos lideres da agitação as mesmas pessoas que implementaram os devastadores programas econômicos antes de Chávez nos anos 90 e quem tentou destruir seu governo duas vezes. Ao mesmo tempo, a tal ‘paz’ ainda tem que ser decidida. Ela significa abranger os problemas reais que as pessoas sofrem, e criar um calço entre uma classe media ansiosa e os auto-proclamados lideres da burguesia? Ou será alcançado por consenso com outros setores da mesma classe, talvez representados por Caprilles, que não tem nenhum compromisso com o socialismo?

A direita venezuelana não é estranha à violência. Em 11 de abril de 2002, lançou um golpe contra Chávez e assumiu o poder. Contata a mídia e exige o assassinato de chavistas tendo em vista o que seriam capazes de fazer. O golpe teve apoio de setores do exército, da igreja, da federação dos funcionários, da embaixada dos EUA e da Organização corrupta do sindicato nacional. Mas falhou devido o levante da massa pobre da população a favor de Chávez e que o trouxeram de volta.

Nove meses depois, a tentativa de destruir a indústria de petróleo e, com isso, a economia como um todo, foi frustrada novamente pela mobilização em massa da maioria dos Venezuelanos – as mesmas pessoas que levaram Chávez ao poder.

A situação presente é uma repetição de Abril? Entre 2002 e 2014, a direita falhou em expulsar Chávez; e o apoio ao então presidente subiu consistentemente até sua morte. Depois disso, seu sucessor Maduro, ganhou as eleições em Abril de 2013. Mas dessa vez, o candidato direitista Henrique Capriles Radonski chegou aos 250,000 votos de diferença, a menos de 1% de ganhar.

Foi uma expressão clara da frustração e raiva crescentes dentre os simpatizantes de Chávez. Em 2012 viram a inflação chegar a 50% e o nível aumentou inexoravelmente pelo ano passado. Atualmente, a cesta básica custa 30% a mais do que o salário mínimo – e isso se os produtos básicos forem encontrados na prateleiras vazias das lojas e mercados. A escassez é explicada, parcialmente, pela especulação por parte dos capitalistas – como aconteceu no Chile em 1972 – e também pelos aumentos nos custos dos importados, que fazem parte de uma proporção crescente do que é consumido no país. E não me refiro à objetos de luxo, mas sim comida, tecnologia básica e até gasolina.

Tudo isso é expressão de uma crise econômica vigorosamente negada pelo governo Maduro, mas óbvio para toda a população. A inflação é causada pela decadência da moeda venezuelana, o bolivar. A verdade é que a produção de qualquer coisa sem ser petróleo levou a uma parada virtual. A indústria de carros emprega 80,000 trabalhadores, só que, desde o inicio de 2014, produziu apenas 200 veículos – o que seria produzido normalmente em um dia.

Como é possível que um país com uma das maiores reservas de petróleo do mundo (e possivelmente de gás também) esteja agora endividado com a China e impossibilitado de financiar o desenvolvimento industrial que Chávez prometeu em seu primeiro plano econômico?

A resposta é mais política que econômica: corrupção em uma escala inimaginável combinada com a ineficiência e total ausência de estratégias econômicas. Nas últimas semanas, houve muitas denuncias públicas de especuladores e contrabandistas se apropriando de petróleo e quase de todo o resto existente na fronteira Colombiana. Além disso, houveram relatos da descoberta de milhares de containeres com comida apodrecida. Mas tudo isso já é de conhecimento comum por anos. É também sabido do envolvimento de setores do Estado e governo em todos esses fatos.

Chávez prometeu poder popular e o investimento da riqueza petrolífera do país em novos programas sociais. E de fato, seus programas de saúde e educação foram fontes de muito orgulho e garantia de um apoio garantido dentre a maioria dos Venezuelanos. Atualmente, esses fundos estão se esvaindo enquanto a renda do petróleo é usada para o pagamento de importações.

O que emergiu no país é uma nova classe burocrática que são, eles mesmos, os especuladores e donos dessa nova e fracassada economia. Atualmente, com o crescimento da violência, eles são vistos declamando discursos furiosos contra corrupção e usando a camisa vermelha e o boné do chavismo.

Mas os bilhões de dólares que desapareceram nos últimos anos e a riqueza acumulada pelos Chavistas são os sinais claros de que seus interesses prevaleceram. As promessas de controle pelas comunidades, vindo de baixo, de um socialismo que beneficiasse toda população, provaram-se vazias.

A direita esperava negociar com essa desilusão. Porém, a falha da direita em mobilizar uma parcela da classe trabalhadora é testemunho da lealdade que a população tem para com o governo chavista ou até mesmo com o próprio Chávez.

A solução não está nas alianças com os oponentes do chavismo, nem em convidar multinacionais como a Samsung para aproveitar a produção barata do seu equipamento no país. O que pode salvar o projeto bolivariano e a esperança que inspirou tantos é: a remoção dos burocratas e especuladores e a reconstrução do poder popular com base no socialismo genuíno – participativo, democrático e exemplar em recusar os valores e métodos do capitalismo que já foi desmascarado pela juventude revolucionária da Grécia, Espanha e Oriente Médio.

Roland Denis, um líder ativista venezuelano, resumiu a questão assim: "Ou transformamos este momento em uma oportunidade criativa para reativar nosso desejo coletivo de revolução, ou podemos começar a dizer adeus à história que vivemos nos últimos 25 anos."

20 de fevereiro de 2014

Marijuana: O alto e o Baixo

Jerome Groopman


Jeff Chiu/AP Images

A New Leaf: The End of Cannabis Prohibition
por Alyson Martin & Nushin Rashidian
New Press, 264 pp., $17.95 (paper)

Tradução / No verão de 2006, um jovem cientista de Israel se juntou a meu laboratório. Veio aprender como vírus atacam células, uma questão relevante na minha pesquisa. Ansiava me aprofundar no meu tema com sua experiência em uma área emergente que muito me intrigava: os efeitos biológicos do canabinoide, um composto químico ativo da marijuana. O cientista tinha estudado na Universidade Hebraica de Jerusalém com o professor Raphael Mechoulam, químico conhecido pela descoberta em 1964 do delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), principal composto psicoativo presente na marijuana. Mais tarde, Mechoulam identificou a cannabidiol (CBD), uma substância relacionada abundante na erva, tão díspar do THC que não apresentou efeitos patentes no humor, na percepção, na consciência ou no apetite. [1]

O trabalho do jovem cientista mostrou-se produtivo. De maneira muito rápida, testou os efeitos de várias canabinoides em um vírus da herpes que causa o desenvolvimento do sarcoma de Kaposi, um tumor desfigurante e por vezes fatal em pessoas com baixa imunidade, como os portadores da Aids. Acontece que o CBD, o composto não psicoativo abundante, pode anular os danos malignos do vírus. [2] No meu departamento, cientistas também descobriram que os canabinoides podem alterar a maneira pela qual leucócitos migram em resposta a um estímulo fisiológico, um aspecto essencial em defesa imunológica. Outras equipes de pesquisa descobriram que o THC inibe o crescimento e a propagação do câncer de pulmão e o CBD, o câncer de mama em protótipos de laboratório. [3] É evidente que substâncias químicas presentes na erva podem ter resultados diversos e potentes tanto em células normais quanto malignas.

No entanto, o que achei mais fascinante é o fator de possuirmos um sistema de canabinoide natural ou “endógeno”. Em 1988, pesquisadores identificaram um local de chegada, ou receptor, na superfície das células cerebrais que retêm o THC. O primeiro receptor foi chamado de canabinoide receptor 1, ou CB1. [4] Cinco anos depois, descobriu-se um segundo receptor para canabinoides, CB2. [5]  Esta última proteína receptora era menos frequente no sistema nervoso central, mas numerosa em leucócitos. Novamente, foi Raphael Mechoulam quem descobriu o primeiro canabinoide endógeno, um ácido adiposo no cérebro, o qual chamou de “anadamida”. (O nome vem do sânscrito ananda que significa “bem-aventurança”.) A ligação entre a anandamida e o CB1 produz uma avalanche de mudanças bioquímicas em nossos neurônios. [6]

Outro canabinoide endógeno foi identificado posteriormente. Isso faz sentido em termos de evolução, na medida em que os receptores CB1 e CB2 estariam ausentes em nossas células, se não criássemos moléculas de forma natural para atracar nesses receptores. As ramificações fisiológicas dos canabinoides endógenos mostram-se bastante amplas; seus efeitos mais impressionantes relacionam-se à percepção e à reação a dor.


A cannabis é uma das mais antigas drogas psicotrópicas em uso contínuo. Arqueologistas confirmam a tese em escavações na Ásia que remontam ao período Neolítico, por volta de 4000 a.C. A espécie mais comum da erva é a Cannabis sativa, presente em climas tropicais e temperados. Marijuana é um termo mexicano que se referia inicialmente a fumo barato e hoje designa as folhas e flores secas do cânhamo. Haxixe é em um termo em árabe para o cânhamo indiano e se refere a sua viscosa resina. Acredita-se que o imperador chinês Shen Nung, que descobriu também o chá e a efedrina, foi um dos primeiros a relatar o uso terapêutico da cannabis em um compêndio médico que data de 2737 a.C. Em 1839, William O’Shaughnessy, médico britânico que trabalhou na Índia, publicou um artigo sobre o uso da cannabis como analgésico e estimulante de apetite que também modera náusea, relaxa os músculos, e pode melhorar ataques epiléticos. Suas observações abriram caminho para um uso amplo da cannabis para fins medicinais no Reino Unido: chegou a ser prescrito à rainha Vitória para aliviar o desconforto menstrual. [7]

A planta de cannabis contém cerca de 460 compostos, entre mais de 60 canabinoides. THC, a substância psicoativa chave na marijuana, aumentou de cerca de 1-5% para 10-15% nas plantas cultivadas desde os anos 60. Ao fumar-se a erva, 20-50% de THC é absorvido pelos pulmões. Ao comê-la, menor quantidade de THC atinge o cérebro porque a substância sofre metabolização ao passar do intestino em direção ao fígado. O THC acumula-se em tecidos adiposos, do qual é liberado devagar, e age primariamente no receptor CB1 na região do sistema dopaminérgico mesolímbico, que, acredita-se, contribui positivamente para o prazer e a excitação da droga. [8]

Embora fumar ou ingerir cannabis provoque, em geral, uma sensação de estar “alto”, de forma relaxada e eufórica à medida que a ansiedade e a precaução diminuem, alguns usuários de primeira viagem, assim como pessoas com transtornos psicológicos, podem sentir mal-estar, medo e pânico. Ao ficar alto, é comum sentir-se um nível de sociabilidade bastante elevado, embora possa haver forte retraimento para aqueles que reagem de forma disfórica. A percepção do tempo é alterada, a sensação em geral é de que as horas passam mais rápido; a percepção de espaço também muda, e as cores parecem mais nítidas e a música mais vibrante. Altas doses de cannabis podem levar a alucinações, costume religioso em algumas culturas. Diferente do ópio, não há casos de morte registrados por overdose de THC, provavelmente porque os canabinoides não inibem os canais respiratórios, que resultaria em asfixia. Para o usuário regular, a falta de marijuana pode causar uma síndrome de abstinência incômoda e perturbadora.

Em 2008, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou uma pesquisa sobre saúde mental com 54.068 participantes com mais de 16 anos em 17 países. Na pesquisa, pelo menos 160 milhões de pessoas entre 15 e 65 anos admitiram ter usado marijuana pelo menos uma vez; o menor uso foi constatado na República Popular da China, 0,3%, e o maior nos Estados Unidos, 42,4%, com a Nova Zelândia em segundo lugar.9

Apesar do vasto consumo, a marijuana ainda é ilegal na maior parte dos países. Harry J. Anslinger, um importante proibicionista, pressionou com sucesso o congresso norte-americano para passar a Lei Fiscal da Marijuana de 1937, deixando o acesso à erva mais custoso. Anslinger foi diretor da Secretaria Federal de Narcóticos e falou em público que a marijuana era um verdadeiro perigo, resultando em “um barato louco”. A Associação Médica norte-americana se opôs à Lei Fiscal da Marijuana, temendo que a medida pudesse limitar o estudo clínico e potenciais receitas médicas. Em 1942, depois de muito tempo listada no United States Pharmacopeia, um compêndio de regras para remédios e alimentos, a cannabis foi removida.

Em 1970, o congresso aprovou a Lei de Substâncias Controladas, que classificou a marijuana junto com a heroína como droga do Anexo 1. Drogas nessa categoria podem viciar e não há nenhum valor medicinal. (Ópio, base da morfina, e anfetaminas pertencem ao Anexo II, e são classificadas como menos nocivas apesar de suas propriedades altamente viciantes.) Logo depois, o presidente Nixon lançou a “guerra às drogas”, e, em 1986, o presidente Reagan assinou a Lei Antidrogas, que condenava pessoas à prisão sem liberdade condicional por posse e venda de todas as drogas ilegais, inclusive marijuana.


O estudo dos canabinoides, tanto os que provêm da planta quanto os endocanabinoides que existem naturalmente em nosso corpo, é uma grande iniciativa global que reúne diversos cientistas do meio acadêmico e de empresas farmacêuticas.

Mitch Earleywine, renomado pesquisador de drogas e vício na Universidade de Albany (SUNY), apontou a semelhança dos resultados dos estudos atuais sobre a marijuana com os borrões do teste de Rorschach: “As pessoas veem essas figuras ambíguas do ponto de vista delas e revela-se mais sobre elas do que sobre a tinta.” Muitos que criam políticas públicas ou estão associados a grupos de interesse respondem à pesquisa com a marijuana de acordo com a visão desses grupos, argumenta ele. Suas interpretações evidenciam mais seus próprios preconceitos que as informações factuais. Por exemplo, os proibicionistas defendem que o THC frequentemente aparece no sangue de sujeitos envolvidos em acidentes de carro; só omitem o fato de que muitos desses indivíduos também consumiram bebidas alcoólicas. Antiproibicionistas citam pesquisas que mostram que usuários crônicos não possuem nenhum sinal de perda memória, mas não mencionam que os testes cognitivos são tão fáceis que mesmo uma pessoa mentalmente incapaz poderia fazê-lo.

Duas análises recentes evitam tais vieses e examinam de modo crítico as informações colhidas em mais de centenas de testes clínicos aleatórios envolvendo placebos controlados em cerca de 6.100 pacientes de diferentes condições médicas. [10] A marijuana parece útil no tratamento de anorexia, náusea e vômito, glaucoma, síndrome do intestino irritável, espasmos musculares, esclerose múltipla, sintomas da esclerose lateral amiotrófica (mal de Lou Gehrig), eplepsia, e síndrome de Tourette. (Testes clínicos recentes confirmam muitas das teses do imperador Shen Nung e do Dr. O’Shaughnessy.) Apesar das descobertas em experiências no meu laboratório e outras, os efeitos anticancer em pacientes são mais duvidosos e nem o THC nem o CBD são comprovadamente agentes antineoplásticos, isto é, adequados para tratar o crescimento anormal de tecido.

Judy Foreman, uma excelente jornalista da área médica, dedica um capítulo à marijuana no seu mais recente livro A Nation in Pain: Healing Our Biggest Health Problem [11]. De forma lúcida, ela examina as informações sobre riscos e benefícios da marijuana enquanto terapia para pacientes com dor, destacando onde parece melhorar, e onde é insuficiente, e onde não é possível afirmar valor algum com clareza. Foreman escreve:

“Para irmos direto ao ponto, a marijuana funciona. Não de forma muito impressionante, mas tão bem quanto os opioides. Isto é, pode reduzir dor crônica em mais de 30%. E com poucos efeitos colaterais sérios. Para se ter certeza, alguns estudiosos acham muito cedo considerar a marijuana e os canabinoides sintéticos como tratamento de primeira linha para dor, argumentando que outras drogas devem ser testadas antes. Essa visão, porém, pode ser cautelosa demais.”

No fim das contas, a marijuana pode ser utilizada em combinação com opioides como a morfina, permitindo menores doses e poucos dos efeitos colaterais decorrentes dos analgésicos da família opioide. Embora a marijuana amenize a dor crônica, seu impacto é mínimo em dores agudas, como depois de uma cirurgia.

Como a cannabis reduz a dor? Alguns dos benefícios podem resultar da dissociação cognitiva: você percebe que a dor é patente, mas não reage a ela emocionalmente. Se você consegue separar-se da dor assim, há menos sofrimento.


Toda terapia, seja droga ou procedimento cirúrgico, requer um equilíbrio entre benefícios versus riscos. Talvez a preocupação mais controversa e importante sobre os canabinoides é a possibilidade de aumentar o risco de psicoses como esquizofrenia, situação mais recorrente entre adolescentes e jovens. Muitos estudos analisaram a saúde de jovens na Suécia, Nova Zelândia e Holanda, que admitiram uso de marijuana, em comparação aos jovens que não usavam. A conclusão de pelo menos 36 estudos relacionaram o uso de cannabis ao desenvolvimento posterior de esquizofrenia e outras psicoses. [12]

A limitação de tais estudos observacionais é que eles sugerem uma associação, mas de modo algum provam uma ligação causal. De fato, na literatura médica há incontáveis estudos observacionais que foram levados a sério, mas depois se mostraram ultrapassados quando testes com placebo controlados vieram à tona. O Women’s Health Iniciative é um bom exemplo. Trata-se de uma pesquisa aleatória, com placebos controlados, que desmentiu o pensamento de quatro décadas sobre os benefícios alegados da terapia de substituição hormonal em mulheres na pós-menopausa, na prevenção de demência e doenças do coração. Não é possível conduzir uma pesquisa aleatória controlada com centenas de adolescentes, escolhendo um grupo para fumar ou ingerir cannabis e outro para receber placebos. Portanto, a relação causal entre marijuana e o desenvolvimento de esquizofrenia e outras psicoses permanecerá um caso não resolvido.

O que está provado é que a marijuana afeta reações cognitivas e psicomotoras. Numerosos estudam revelam que a droga retarda o tempo de reação de uma pessoa e prejudica a atenção, a concentração, a memória de curto prazo e a avaliação de riscos. As mudanças na performance psicomotora podem ir além da sensação de estar “alto”. Testes com pilotos profissionais concluíram que a marijuana prejudicou a condução em um simulador de voo por até 24 horas. [13] Além disso, a maioria dos pilotos não percebeu que o efeito durou até o dia seguinte. Muitas pesquisas relacionaram a cannabis a acidentes de carro: estima-se que motoristas que usaram marijuana são de duas a sete vezes mais propensos a se envolver em acidentes que aqueles que não usaram drogas ou álcool. [14]

A Associação Americana Psiquiátrica, em seu novo dicionário médico (DSM-5), definiu o diagnóstico de “transtorno do uso de cannabis”. Essas pessoas têm por hábito o uso com consequências nocivas, como inaptidão de desempenhar grandes responsabilidades no trabalho e problemas sociais persistentes em família. Tanto o DSM-5 quanto o International Classification of Diseases 10th edition (ICD-10) também incluem uma lista de possíveis sintomas da abstinência de marijuana: fatiga intensa, sonolência, retardo psicomotora, ansiedade e depressão. [15] Há ainda um debate caloroso sobre se a marijuana vicia ou não. Proponentes da marijuana duvidam que possa haver vício real, condição psicológica com desejo e uso compulsivo a despeito de seus males. Argumentam também que a dependência, caso haja alguma, é menos nociva do que em outras drogas. Oponentes da marijuana, principalmente aqueles dos institutos nacionais de saúde, afirmam que dependência e vício são riscos reais, embora em um percentual mais baixo do que a cocaína ou heroína. [16]


O livro A New Leaf: The End of Cannabis Prohibition detalha a história da regulação da marijuana, apresentando em pormenores os conflitos legais e políticos em torno da proibição. It opens on a celebratory note, with the legalization of marijuana for recreational use in two states:

“Another prohibition is ending. On November 6, 2012, voters in Colorado and Washington were the first in the world to successfully challenge nearly a century of bad policy and misconceptions about cannabis. 
In downtown Seattle, the Hotel Ändra was dressed white and blue, the team colors of Washington State's... campaign.... 
Around 7 pm, the owner of one of the largest and most successful medical cannabis dispensaries in the country arrived. Steve DeAngelo was unmistakable even in a crowd, with his signature long, tight pigtail braids and dark fedora….Earlier that year, he was the star of his own Discovery Channel show, Weed Wars .His two Harborside Health Centers are in the Bay Area, but he had a soft spot for Seattle. Just a few months before, he had spoken at Seattle's well-known Hempfest, attended by tens of thousands each year. “I've been working on this issue for my entire life…. And I know tonight…that there's going to be a whole lot of angels dancing in heaven,” DeAngelo said, his eyes flooding.”

The authors describe a similar scene in Denver:

“Brian Vincente, a lawyer who advocated for medical cannabis in Colorado for nearly a decade,… took the stage. “Tonight we made history. This is something you're going to tell your kids about,” Vincente said. “Marijuana prohibition started in 1937. The first person arrested was in Colorado.” The crowd booed. “Colorado fucking turned this thing around tonight.” And with the f-word came gaiety.

These successes resulted from a unique effort joining groups from the ends of the political spectrum:

“The support of conservative Republicans and Libertarians was as important to the Colorado…campaign as that of Democrats and liberals…. The swing state of Colorado, birthplace of the Libertarian party, is decidedly purple. The Libertarian Party of Colorado emphatically endorsed Amendment 64 in May, for example, while the Colorado Democratic Party offered support but stopped short of an endorsement. The Republican Liberty Caucus of Colorado also endorsed the amendment because prohibition is “inconsistent with Republican values,” which call for more “personal responsibility” and less “federal overreach.””


Artigos recentes das revistas The New Yorker [17] e The Nation [18] descrevem de maneira sucinta a seara política em torno da legalização da marijuana para uso médico ou recreativo nos Estados Unidos. No artigo da The New Yorker, o professor Mark Kleiman, especialista em política de drogas da Universidade da Califórnia em Los Angeles, vê a legalização do ponto de vista de um cientista, como se fosse uma experiência em andamento. A legalização testará um grupo de hipóteses sobre políticas públicas, e ele prefere não concluir nada até que mais informações estejam disponíveis.

Assim como toda iniciativa social, consequências negativas são prováveis, e Kleiman defende um monitoramento minucioso do uso excessivo entre adolescentes e da direção sob influência da marijuana quando disponível para uso recreativo. Ele, “aparentemente”, segundo a reportagem da The New Yorker, “obtém um prazer mórbido ao informar aos políticos que eles subestimam a complexidade do problema”. Outra grande preocupação é que quando a marijuana legal estiver à venda no estado de Washington, o mercado negro existente não desaparecerá; ou melhor, a marijuana legal e de venda livre competirá com fontes ilícitas. Kleiman defende que para apoiar o mercado legal, deve haver ainda mais rigor na lei para aqueles que não respeitam as regras. E, em Washington, poucos congressistas querem ouvir tal proposta.

De igual maneira, Kleiman não acha que o álcool será menos visado se a marijuana for legalizada. Embora reconheça que o álcool é a mais perigosa das duas drogas, o professor levanta a possibilidade de que a marijuana possa ser consumida de forma complementar à bebida alcoólica. Concluindo, ele enxerga: “O mundo maniqueísta da política” – o pêndulo pode ir da ilegalidade da marijuana, venda e uso levando à prisão até “aqueles que acham que ‘deveríamos vendê-la como água’”.

Em contraste com a matéria cautelosa do The New Yorker, os artigos da revista The Nation propõem uma evidente endosso à legalização. Na capa da revista, uma foto do jovem Barack Obama com o V da vitória ao lado de colegas apinhados ao redor da logo da “Choom Gang”. O editorial, assinado por Katrina vanden Heuvel, pontua que os últimos presidentes, entre eles Bill Clinton, George W. Bush e Barrack Obama, todos “de uma forma ou outra não respeitaram as leis norte-americana de drogas”, portando ou fumando cannabis. Se tivessem sido flagrados pela polícia, poderiam estar presos, sem qualquer chance de uma carreira na Casa Branca. O livro A New Leaf: The End of Cannabis Prohibition destaca os riscos de prisão por porte de marijuana. A discriminação racial, com um número desproporcional de afro-americanos presos, é a triste realidade da proibição:

“Enquanto os usuários de cannabis que são encaminhados à delegacia raramente vão para a prisão, há ainda mais de 30 mil pessoas presas por mero porte. Segundo um amplo relatório de 2013 publicado pela American Civil Liberties Union (ACLU), entre 2001 e 2010 houve mais de oito milhões de detenções por marijuana nos Estados Unidos (88% por porte), e o cumprimento da lei por porte custa sozinho mais de 3,6 milhões de dólares em 2010. 
Em todo o país, os negros têm quase quatro vezes mais probabilidade que os brancos de serem detidos por porte, apesar de índices de uso praticamente iguais; em alguns países, o número aumenta de 4 a 30 vezes. Enfim, 62% dos capturados têm menos de 24 anos, o que significa que isso constará em sua ficha ao longo da vida adulta.”

Todo esse desperdício de horas, dinheiro e prisões tiram a atenção do uso indiscriminado e do tráfico de drogas:

“Novamente, quando a marijuana – que responde por 80% dos entorpecentes ilegais nos Estados Unidos – for retirada da guerra contra as drogas, o país poderá efetivamente discutir e implantar uma nova e mais flexível política de saúde pública para outras drogas pesadas.”


Há muitos anos, recebi uma consulta de uma jovem com anemia. O clínico tinha feito uma avaliação completa da sua condição, mas não achou motivo para a doença. A paciente tinha passado por períodos estressantes no trabalho, e quando perguntei como lidava com isso, ela disse que costumava fumar marijuana toda noite. Segundo o exame de medula óssea, havia número reduzido de células, não tão grave para ser classificado como anemia plástica, mas sem dúvida anormal para uma mulher com vinte e poucos anos. Os numerosos componentes da cannabis não são tidos como tóxicos para as células sanguíneas; fumar marijuana nunca causou anemia. Lembro-me, porém, que algumas colheitas ilícitas têm sido tratadas com toxinas que podem apresentar efeitos perniciosos ao desenvolvimento de células sanguíneas.

Então, juntos decidimos suspender o fumo, e depois de alguns meses a anemia estava resolvida. Um exame subsequente de medula óssea revelou a restauração completa dos números normais de células sanguíneas. Não foi uma prova definitiva, mas certamente sugeriu que algo da erva que ela comprara de um traficante foi a causa. Se não houver uma fiscalização adequada da marijuana à venda, aqueles que procuram a cannabis de rua podem se expor a perigosos ingredientes.

No livro Weed Land: Inside America's Marijuana Epicenter and How Pot Went Legit, Peter Hecht, jornalista do The Sacramento Bee, mapeia a evolução da lei da maconha para fins medicinais na Califórnia, a primeira dos Estados Unidos. [19] Muito do apoio para sua jornada veio da união de forças entre ativistas da Aids e médicos acadêmicos como Donald Abrams do hospital geral de São Francisco, que comprovou os benefícios clínicos para apetite aumentado e alívio de dor em pacientes com caquexia decorrente do HIV. Maconha para fins médicos, agora legal em vinte estados mais o Distrito de Columbia, é regulamentada mais como suplemento que como uma droga. Não há uma padronização de porções ideais para o THC psicoativo e o CBD não psicoativo, embora devam ser sem toxinas. (Um empresa britânica, GW Pharmaceuticals, fabrica o Sativex, um spray oral que contém extratos de duas variedades de cannabis padrão que são misturadas para dar doses exatas de THC e BD. O Sativex foi aprovado em muitos países, mas não nos Estados Unidos.)

Para um médico como eu, prescrever terapia é uma situação desconfortável, porque a receita médica deve especificar a quantidade exata da droga recomendada. Além disso, efeitos colaterais podem ocorrer em pacientes que tomam múltiplos medicamentos, devido à chamada “interações droga-droga”. Essas interações não foram bem examinadas em relação ao THC e o CBD, em parte por causa do acesso restrito à planta para a comunidade de pesquisada clínica. Os cientistas em meu laboratório estudaram substâncias químicas puras, THC e CBD, sob restrita supervisão federal; compramos os canabinoides de empresas químicas que usam controle de qualidade. Como apontam Martin e Rashidian, o estudo médico da planta em si, contendo as susbtâncias químicas ativas, é outra questão:

“O governo federal impôs uma série de restrições adicionais e exclusivas para a pesquisa com a cannabis, com pouca sensatez – exceto no campo político. O governo concedeu a uma única instituição, a Universidade do Mississipi, a permissão de cultivar cannabis legalmente para pesquisa em nome do Estado, embora seja livre para contemplar outros contratos. E a cannabis é a única substância para pesquisa cujo único provedor é o governo. Para um cientista obter cannabis da fazenda federal, na Universidade do Mississipi, é preciso um montão de aprovações... do FDA, DEA, do conselho do Serviço de Saúde Pública.”

Talvez, à medida que os estados legalizem a marijuana, essa barreira à pesquisa possa ser menor, assim como foi para a pesquisa com células-tronco, antes restrita, nos EUA, por lei federal. E, quanto mais estudos sobre a marijuana para fins médicos ou recreativos aparecerem, é provável que oponentes e entusiastas descubram que não estavam nem totalmente certos, nem totalmente errados.

Notas

1. Mohamed Ben Amar, “Cannabinoids in Medicine: A Review of Their Therapeutic Potential,” Journal of Ethno-pharmacology, Vol. 105 (2006); Arno Hazekamp and Franjo Grotenhermen, “Review on Clinical Studies with Cannabis and Cannabinoids 2005–2009,” Cannabinoids, Vol. 5 (2010).

2. Y. Maor, J. Yu, P.M. Kuzontkoski, B.J. Dezube, X. Zhang, and J.E. Groopman, “Cannabidiol Inhibits Growth and Induces Programmed Cell Death in Kaposi Sarcoma–Associated Herpesvirus-Infected Endothelium,” Genes & Cancer, Vol. 3, No. 7–8 (2012); X. Zhang, J.F. Wang, G. Kunos, and J.E. Groopman, “Cannabinoid Modulation of Kaposi’s Sarcoma–Associated Herpesvirus Infection and Transformation,” Cancer Research, Vol. 67, No. 15 (August 1, 2007).

3. S. Ghosh, A. Preet, J.E. Groopman, and R.K. Gaju, “Cannabinoid Receptor CB 2 Modulates the CXCL 12/ CXCR 4-Mediated Chemotaxis of T Lymphocytes,” Molecular Immunology, Vol. 43 (2006); A. Preet, R.K. Ganju, and J.E. Groopman, “∆ 9 -Tetrahydrocannabinol Inhibits Epithelial Growth Factor–Induced Lung Cancer Cell Migration in Vitro as Well as Its Growth and Metastasis in Vivo,” Oncogene, Vol. 27 (2008); X. Zhang, Y. Maor, J.F. Wang, G. Kunos, and J.E. Groopman, “Endocannabinoid-like N-arachidonoyl Serine Is a Novel Pro-angiogenic Mediator,” British Journal of Pharmacology, Vol. 160 (2010); A. Preet, Z. Qamri, M. Nasser, A. Prasad, K. Shilo, X. Zou, J.E. Groopman, and R. Ganju, “Cannabinoid Receptors, CB 1 and CB 2, as Novel Targets for Inhibition of Non-Small Cell Lung Cancer Growth and Metastasis,” Cancer Prevention Research, Vol. 4 (2011); A. Shrivastava, P.M. Kuzontkoski, J.E. Groopman, and A. Prasad, “Cannabidiol Induces Programmed Cell Death in Breast Cancer Cells by Coordinating the Cross-Talk Between Apoptosis and Autophagy,” Molecular Cancer Therapeutics, Vol. 10 (2011).

4. W.A. Devane, F.A. Dysarz III, M.R. Johnson, L.S. Melvin, and A.C. Howlett, “Determination and Characterization of a Cannabinoid Receptor in Rat Brain,” Molecular Pharmacology, Vol. 34 (November 1, 1988).

5. S. Munro, K.L. Thomas, and M. Abu-Shaar, “Molecular Characterization of a Peripheral Receptor for Cannabinoids,” Nature, Vol. 365 (1993).

6. W.A. Devane, L. Hanus, A. Breuer, R.G. Pertwee, L.A. Stevenson, and G. Griffin, “Isolation and Structure of a Brain Constituent That Binds to the Cannabinoid Receptor,” Science, Vol. 258 (December 18, 1992).

7. D. Baker, G. Pryce, G. Giovannoni, and A.J. Thompson, “The Therapeutic Potential of Cannabis,” Lancet Neurology, Vol. 2 (May 2003).

8. Mitch Earleywine, Understanding Marijuana: A New Look at the Scientific Evidence (Oxford University Press, 2002).

9. L. Degenhardt, W.T. Chiu, N. Sampson, et al., “Toward a Global View of Alcohol, Tobacco, Cannabis, and Cocaine Use: Findings from the WHO World Mental Health Surveys,” PLoS Medicine, Vol. 5 (July 2008).

10. See Amar, “Cannabinoids in Medicine: A Review of Their Therapeutic Potential,” and Hazekamp and Grotenhermen, “Review on Clinical Studies with Cannabis and Cannabinoids 2005–2009.”

11.Oxford University Press, 2014

12. M. Large, S. Sharma, M.T. Compton, T. Slade, O. Nielssen, “Cannabis Use and Earlier Onset of Psychosis,” Archives of General Psychiatry, Vol. 68, No. 6 (2011).

13. V.O. Leirer, J.A. Yesavage, and D.G. Morrow, “Marijuana Carry-Over Effects on Aircraft Pilot Performance,” Aviation, Space, and Environmental Medicine, Vol. 62, No. 3 (1991); D.G. Newman (Australian Government, Australian Transport Safety Bureau), “Cannabis and Its Effects on Pilot Performance and Flight Safety: A Review” (2004).

14. M. Asbridge, J.A. Hayden, and J.L. Cartwright, “Acute Cannabis Consumption and Motor Vehicle Collision Risk: Systematic Review of Observational Studies,” BMJ, Vol. 344, No. 14 (2012).

15. D.S. Hasin, K.M. Keyes, D. Alderson et al., “Cannabis Withdrawal in the United States: Results from NESARC,” Journal of Clinical Psychiatry, Vol. 69, No. 9 (2008).

16. See Baker et al., “The Therapeutic Potential of Cannabis,” and Foreman, A Nation in Pain.

17. Patrick Radden Keefe, “Buzzkill,” The New Yorker, November 18, 2013.

18. Katrina vanden Heuvel, “Why It’s Always Been Time to Legalize Pot,” and other articles in The Nation’s “Special Issue: Marijuana Wars,” November 18, 2013.

19. Peter Hecht, Weed Land: Inside America’s Marijuana Epicenter and How Pot Went Legit (University of California Press, May 2014).

Jerome Groopman é o Professor de Medicina em Harvard e Diretor da Experimental Medicine. Ele publicou mais de 180 artigos científicos, e é escritor da The New Yorker. Mais recentemente publicou, em co-autoria com Pamela Hartzband, o livro Your Medical Mind: How to Decide What Is Right for You.

15 de fevereiro de 2014

Os riscos de uma leitura vitimizadora do golpe de 1964

Entender por que uma solução autoritária foi de algum modo aceita pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do despotismo que tantas vezes assolou a República, diz historiador

Carlos Fico

O Globo

Foto | Marcha da Família com Deus pela Liberdade no Centro do Rio de Janeiro/Arquivo/Agência O GLOBO/2-4-1964

O golpe de 1964 é muito citado, mas pouco pesquisado. A literatura especializada usualmente o menciona como a culminância dramática da trajetória de João Goulart ou como o episódio inaugural da ditadura. Hoje, temos uma historiografia crescente sobre os 21 anos dos governos militares, mas o golpe em si não é o objeto preferencial de tais pesquisas. Entretanto, ele é o “evento-chave” da história do Brasil recente: naquele momento, parcelas significativas da sociedade brasileira aceitaram uma solução autoritária para os problemas que afligiam o país. Podemos assegurar que estamos livres dessa “tentação”? Estudos verticalizados sobre o golpe nos ajudariam a responder a esta pergunta.

Não houve grandes revelações desde as últimas contribuições da historiografia conhecidas há mais de três décadas. De fato, os principais “achados” sobre 1964, especificamente, foram divulgados nos anos 1970 e 1980: a descoberta da “Operação Brother Sam” (o apoio norte-americano ao golpe), por Phyllis R. Parker, em 1976; o livro “O governo João Goulart”, de Moniz Bandeira, publicado em 1978 e a obra magistral de René Armand Dreifuss, de 1980, “1964: a conquista do Estado”, que deslindava, com documentos inéditos, a campanha de desestabilização de que João Goulart foi vítima.

Certamente não se deve reduzir a pesquisa histórica à busca de revelações chocantes, mas seria ingênuo não reconhecer sua importância. Nesse sentido, não é difícil antecipar que significativas informações surgirão a partir da pesquisa de novas fontes documentais — e elas são muitas. Os documentos outrora sigilosos, no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países, vêm sendo revelados paulatinamente. Por exemplo, encontra-se em curso, neste momento, pesquisa documental sobre a comissão que cuidou dos primeiros inquéritos policiais militares (IPMs) logo após o golpe. Do mesmo modo — conforme a legislação norte-americana —, a importante documentação do governo daquele país vai aos poucos sendo liberada. Amplo projeto de digitalização desses documentos, conduzido por historiadores do Brasil e dos EUA, encontra-se em andamento. Militares e políticos brasileiros tinham conhecimento da “Operação Brother Sam” e esta revelação virá inevitavelmente.

As principais teses explicativas sobre o golpe também foram divulgadas há muito tempo. Duas delas são clássicas. Alfred Stepan publicou, em 1969, a interpretação segundo a qual a singularidade de 1964 residiria na mudança do padrão de intervenções militares: em vez de apenas corrigir os rumos e devolver o poder aos civis, os militares, na ocasião, estariam convencidos de que deveriam assumir integralmente o poder. A leitura de Wanderley Guilherme dos Santos, divulgada em 1979, é mais sólida porque amparada em expressiva pesquisa empírica: o golpe de 1964 se explicaria em função de uma “paralisia decisória”, isto é, a radicalização dos atores políticos impediria qualquer tomada de decisão. Outra contribuição importante e mais recente contrapôs-se à leitura marxista segundo a qual os militares eram mero “instrumento” da burguesia: a preocupação em valorizar o que os próprios oficiais pensavam motivou a equipe do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) a realizar significativas entrevistas com eles, publicadas em 1994, por meio das quais podemos conhecer sua própria interpretação sobre o golpe.

Boa parte dos projetos de pesquisas que se candidatam aos mestrados e doutorados em História, Brasil afora, dizem respeito aos diversos temas do regime militar. O notável avanço da pós-graduação em nossa área, nas últimas décadas, tem permitido um conhecimento mais detalhado do golpe e da ditadura a partir de uma perspectiva regional — pois, até recentemente, dispúnhamos de leituras que abordavam, sobretudo, o que houve no Sudeste e em Brasília.

O distanciamento histórico é essencial para que possamos abordar questões delicadas, temas tabu. Talvez se possa dizer que o maior avanço da historiografia recente consista nessa busca de objetividade: hoje podemos nos lembrar de que setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart. Jovens pesquisadores têm dado grandes contribuições: Aline Presot comprovou que as Marchas da Família com Deus pela Liberdade expressaram efetiva insatisfação das classes médias urbanas, não resultando apenas da “manipulação” propagandística. Mateus Capssa mostrou que alguns estudantes apoiaram o golpe de 1964. Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Historiadores como Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg têm chamado a atenção para isso. A serenidade possibilitada pelo recuo temporal e a grande quantidade de novas fontes documentais nos permitem antever um futuro muito promissor para as pesquisas sobre o golpe de 1964.

Isso é essencial. Se entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República.

Sobre o autor


Carlos Fico é historiador, professor da UFRJ e autor dos livros “Além do golpe — Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar” e “O grande irmão — Da Operação Brother Sam aos anos de chumbo”

11 de fevereiro de 2014

Novas massas?

Bases sociais da resistência

Göran Therborn


NLR 85 • JAN/FEB 2014

Se quiserem fazer sentido político, as críticas ao capitalismo devem ter - ou arranjar - uma base social. Nos séculos XIX e XX, a crítica mais relevante ficou conhecida como "questão operária" - sua base mais representativa se ​​encontrava justamente na classe operária industrial em ascensão. Era um tema que interessava não só às organizações operárias emergentes e seus eventuais simpatizantes, de convicções liberais, mas também à opinião conservadora; até os fascistas, os inimigos mais violentos do movimento operário, se organizaram a partir desse exemplo. Os operários industriais mantiveram sua posição proeminente até a década de 1970, quando surgiu uma base social para a luta anticapitalista nos movimentos anticolonialistas, mobilizados pela libertação nacional das colônias e contra o "desenvolvimento dependente" imposto pelo imperialismo.

Contudo, nos últimos trinta anos assistimos a uma desindustrialização no Norte, que deteve e inverteu a marcha do operariado. Já a industrialização bem-sucedida de países líderes do Sul, durante esse mesmo período, resultou sobretudo na visão atual de que o desenvolvimento capitalista também é possível na Ásia, na África e na América Latina, ao contrário do que diziam as teorias da dependência, outrora influentes. Assim, será que existe hoje alguma força social que poderia assumir o papel da classe trabalhadora organizada ou dos movimentos anticolonialistas do século XX? No momento, não se veem as camadas de massas anticapitalistas – uma situação nova para o capitalismo, no contexto dos últimos 150 anos. Contudo, se não procurarmos movimentos anticapitalistas, mas sim formações que encerrem, potencialmente, uma posição crítica ao desenvolvimento capitalista contemporâneo, veremos que há forças sociais importantes se manifestando. Podemos distinguir quatro tipos diferentes.

A partir das margens

A primeira força social potencialmente crítica consiste em populações pré-capitalistas que resistem às intrusões das grandes empresas. Os principais atores são os povos indígenas, que em tempos recentes alcançaram certo poder. Eles são politicamente significativos na América Andina e na Índia, mas também se encontram em grande parte do Sul e criaram redes de contatos internacionais. Eles não são numerosos o bastante, tampouco dispõem de recursos suficientes para exercer grande influência, a não ser em termos locais; suas lutas, porém, podem se articular com movimentos críticos de resistência mais amplos. Hoje representam considerável força na Bolívia, onde compõem com uma coalizão governamental turbulenta, e na Índia, onde centralizam uma insurgência em grande escala; em ambos os casos, os organizadores provêm da tradição do movimento operário - na Bolívia, mineiros socialistas demitidos, transformados em plantadores de coca; na Índia central, revolucionários profissionais maoistas. Estes últimos andaram sofrendo reveses, mas não foram derrotados nem destruídos. No México, os zapatistas ainda conservam a região de Lacandona, no estado de Chiapas. Essas mobilizações podem ser contraditórias: em Bengala Ocidental, de governo comunista, os camponeses que defendem suas terras contra projetos de desenvolvimento industrial impediram uma virada para o estilo chinês e empossaram um regime de extrema direita.

A segunda força crítica, em grande parte extracapitalista, é composta das centenas de milhões de camponeses sem-terra, trabalhadores informais e vendedores ambulantes que constituem as vastas populações das favelas em muitas partes da África, Ásia e América Latina. (Seu equivalente no Norte talvez seja o crescente número de jovens marginalizados, tanto nativos como imigrantes, excluídos da esfera do emprego.) Eles constituem, em potencial, um alentado fator de desestabilização para o capitalismo. A ira e a violência reprimidas dessas camadas já se mostraram muitas vezes explosivas, resultando em pogrons étnicos ou apenas em vandalismo descontrolado. No entanto, esses “miseráveis da terra” também já se envolveram em lutas contra despejos e pelo acesso a água e energia elétrica; tiveram papel significativo nas revoltas árabes de 2011 e nos protestos contra a austeridade econômica no litoral norte do Mediterrâneo e do Mar Negro - Grécia, Espanha, Bulgária, Romênia.

Em que condições essas forças poderiam se articular com alguma alternativa socioeconômica viável? Qualquer alternativa crítica precisaria falar diretamente a suas preocupações fundamentais - sua identidade existencial coletiva e seus meios de subsistência. Para atingir em profundidade esses estratos populares, seriam necessários meios de comunicação específicos e líderes carismáticos, com trânsito por todas as redes. Como a população urbana geralmente não é organizada, essa força com potencial crítico só entrará em ação se gerada por um acontecimento de natureza imprevisível.

Massas de colarinho branco

A dialética cotidiana do trabalho assalariado capitalista segue atual, embora tenha se reconfigurado geograficamente. A classe operária industrial que subsiste no Norte continua fraca demais para representar algum desafio anticapitalista; a austeridade econômica e as ofensivas capitalistas, contudo, estão engendrando protestos de horizonte curto - inclusive na França, onde, em 2010, operários organizados ameaçaram interromper o fornecimento de gasolina, e, em 2012, metalúrgicos ocuparam fábricas. Os novos trabalhadores industriais na China, Bangladesh, Indonésia e outras partes do Sul podem ter mais cacife para fazer demandas anticapitalistas, mas sua posição fica debilitada pela vasta oferta de mão de obra. Além disso, esses trabalhadores já estão sendo ultrapassados por padrões de emprego mais fragmentados do setor de serviços. Repetidas tentativas de fundar partidos operários, da Nigéria à Indonésia, fracassaram; o único sucesso nos últimos trinta anos foi o PT no Brasil. Tanto na Coreia do Sul como na África do Sul há movimentos operários importantes, baseados nos sindicatos, mas lhes faltam articulações políticas fortes: os sindicatos sul-africanos são ofuscados pela natureza do governo do ANC (Congresso Nacional Africano), e na Coreia os sindicatos se veem prejudicados por um partidarismo mesquinho, que no final de 2012 conseguiu torpedear um projeto, já bem desenvolvido, de formação de um partido de esquerda unido.

Embora no Sul as lutas de classe tenham obtido aumentos salariais e, em certa medida, condições de trabalho menos horríveis, parece improvável que se transformem num desafio mais sistêmico. No leste da Ásia, em particular, o capitalismo industrial está conseguindo elevar os níveis de consumo de modo muito mais rápido que as economias europeias, de desenvolvimento mais lento. É verdade que os atuais governos do Partido Comunista na China e no Vietnã não descartam uma virada anticapitalista - que seria viável, caso fosse tentada. Para tanto, seria preciso que o crescimento apresentasse uma queda e também ocorresse uma mobilização eficaz dos trabalhadores contra a enorme desigualdade, que ameaça a “harmonia” ou coesão social do capitalismo comunista. Tal conjectura é imaginável, mas altamente improvável, pelo menos em médio prazo. Cenário mais promissor pode ser a articulação das lutas operárias com as lutas comunitárias por habitação, saúde, educação ou direitos civis.

Temas críticos

Uma quarta força social potencialmente crítica pode estar surgindo no seio da dialética do capitalismo financeirizado. Camadas da classe média - incluindo, como fator decisivo, os estudantes - desempenharam papel fundamental nos movimentos de 2011 na Espanha, Grécia, Oriente Médio árabe, Chile, bem como nos protestos mais fracos do movimento Occupy nos Estados Unidos e na Europa - e na onda de manifestações na Turquia e no Brasil, em 2013. Essas irrupções levaram às ruas tanto jovens da classe média como das camadas populares contra sistemas capitalistas corruptos, exclusivistas, causadores de polarização social. Eles não conseguiram desestabilizar o poderio do capital, ainda que em 2011 dois governos tenham sido derrubados, Egito e Tunísia. No entanto, talvez venham a se revelar como ensaios gerais para dramas que estão por vir.

Os discursos sobre a nova classe média se multiplicaram nos últimos dez anos. Quando se originam na África, Ásia e América Latina, ou discorrem sobre essas regiões, predomina o tom triunfalista - embora mais cauteloso acerca da Europa Oriental -, que proclama a iminência de grandes mercados de consumidores solventes. Corretos ou não, discursos de classe são sempre significativos socialmente, de modo que o recrudescimento, a nível global, do discurso da classe média é um notável sintoma da década de 2010. Normalmente não aponta para nenhuma dialética social crítica; pelo contrário, em geral aplaude o triunfo do consumismo. A classe trabalhadora está desaparecendo dos documentos do Partido Comunista chinês e vietnamita, enquanto na Europa - Alemanha à frente - o ideal de uma "sociedade empresarial" substituiu a autoimagem de "sociedade assalariada" de meados do século XX. Comentaristas políticos costumam ver na classe média um alicerce promissor para economias "sólidas" e para a democracia liberal, embora economistas ponderados, particularmente no Brasil, já enfatizassem a fragilidade da noção de classe média e o risco sempre presente da pobreza a que muita gente está exposta. Já nos Estados Unidos predomina a preocupação com o declínio da classe média, em status econômico e peso social. A Europa Ocidental não seguiu exatamente o mesmo caminho: ali a noção de classe média sempre foi mais circunscrita do que nas Américas ou na Ásia – incluindo a China pós-maoista – devido à presença discursiva já bem estabelecida de uma classe trabalhadora. Fora da Europa, o novo conceito de classe média hoje engloba a vasta massa da população que fica entre os muito pobres e os ricos – com frequência a linha de pobreza é definida como uma receita ou despesa diária de 2, 4 ou 10 dólares, enquanto o limite superior exclui apenas os 5 ou 10% mais ricos.

Diferentemente da classe operária industrial, o composto heterogêneo conhecido como “classe média” não tem nenhuma relação específica com a produção, tampouco abriga tendências próprias de desenvolvimento, salvo o consumo ilimitado. No entanto, não importa como seja definida, a classe média – ou partes substanciais dela – já demonstrou ser capaz de atuar politicamente de modo significativo, e sua importância aumenta com o declínio ou a desorganização do proletariado industrial. A crescente classe média do Sul global merece particular atenção, pois pode ser crucial na definição das opções políticas.

Justamente por sua indeterminação social, a pressão da classe média pode ser aplicada em direções diferentes, e até opostas. No Chile, a classe média mobilizada atuou fortemente por trás do golpe de Pinochet, enquanto na Venezuela, em 2002, ela apoiou uma tentativa fracassada de desbancar Hugo Chávez; seis anos depois, os abastados “Camisas Amarelas” de Bangcoc derrubaram o governo da Tailândia. Como mostra a história da Europa do século XX, a classe média não é uma força intrinsecamente a favor da democracia. Mas também tem exercido pressão por mudanças democráticas, tendo atuado em Taiwan e na Coreia do Sul na década de 1980 – ao lado dos operários industriais – e na Europa Oriental em 1989. Foi uma força fundamental no Cairo e em Túnis em 2011, e defendeu os protestos populares de rua na Grécia, Espanha, Chile e Brasil em 2011–13. Sua volatilidade política é vividamente ilustrada pelas guinadas no Egito, desde a aclamação da democracia até a adulação aos militares e sua crescente repressão, aceitando, efetivamente, a restauração do ancien régime sem Mubarak.

Mas as intervenções críticas de forças da classe média também podem se manifestar nas urnas. Em 2012 a Cidade do México, com uma população igual à de um país europeu de tamanho médio, elegeu um prefeito de esquerda pelo quarto mandato consecutivo; o candidato, Miguel Ángel Mancera, abocanhou quase 64% dos votos, números que sugerem um bloco popular incontornável. Na Índia, a trajetória do AAP, o Aam Aadmi Party (Partido do Homem Comum), continua indefinida. O avanço espetacular do partido e de seu líder, Arvind Kejriwal, deveu-se a uma nova aliança que uniu manifestantes anticorrupção de classe média a um conjunto de propostas concretas sobre o acesso a água e outros serviços públicos, que podiam beneficiar camadas mais amplas. O novo partido venceu em Nova Delhi, bem como em nove dos doze distritos eleitorais das castas mais desfavorecidas, assumindo o governo da capital em fins de 2013 – e deixando o cargo depois de apenas 49 dias, quando seus esforços legislativos para coibir a corrupção se paralisaram por falta de aprovação do governo central. Na Indonésia, um candidato reformista, Jokovi, ganhou o governo de Jacarta em 2012, vencendo (com uma plataforma de ampliação dos serviços de educação e saúde e promoção do “urbanismo empresarial”) as forças locais do establishment, além de uma odiosa campanha sectário-religiosa (seu companheiro de chapa era um chinês cristão). Também aqui a força e a eficácia das alianças de classe – sua capacidade de oferecer melhorias tangíveis às massas populares – ainda estão por surgir.

O capitalismo – e sobretudo o capitalismo industrial – tem sido alvo de críticas culturais desde que o poeta William Blake denunciou seus “tenebrosos moinhos satânicos”. Durante muito tempo o sistema simplesmente passava direto por essas lamentações, mas o ano de 1968 pôs fim ao sossego. Os movimentos então simbolizados não fizeram muito progresso contra o capitalismo em si, mas exerceram impacto sobre as relações sociais: conseguiram erodir o patriarcado e a misoginia, deslegitimar o racismo institucional, reduzir a deferência e a hierarquia – em suma, promoveram a igualdade existencial, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Contudo, boa parte dessas transformações culturais vem sendo absorvida pelo capitalismo avançado, com a informalidade das indústrias de alta tecnologia, a onda de mulheres em altos cargos executivos, a generalização dos direitos dos gays e do casamento homossexual, a figura social do bubo, o burguês boêmio com dinheiro e valores de esquerda, e assim por diante.

Os movimentos baseados numa crítica cultural da sociedade capitalista sempre clamaram pela limitação e a regulamentação do desenvolvimento capitalista; ou então apresentaram formas alternativas de vida. As próximas décadas podem vir a conhecer pelo menos quatro tipos de movimentos crítico-culturais significativos, tanto pela abordagem da “limitação” como pela proposta de“alternativas”. Historicamente, o argumento mais importante a favor da limitação apontou a ameaça que o capitalismo desenfreado representa para a coesão social. A questão ambiental é mais recente, com sua discussão sobre o risco que o ecossistema corre pelas consequências não intencionais da industrialização, cada vez mais fora de controle.

Entre as “alternativas”, a relevância dosocialismo anda suspensa, porém há outras visões claramente discerníveis, mais parecidas com o comunismo no sentido marxista original do que com o socialismo industrial do século XX. Hoje é possível identificar dois desses movimentos, pelo menos em embrião, ambos oferecendo a promessa de uma qualidade de vida superior à do capitalismo. A primeira, mais bem articulada na Alemanha, parte da experiência dos países desenvolvidos e tem uma ênfase “pós-crescimento”. A segunda apresenta uma alternativa geossocial, derivando sua força do Sul não capitalista.

Em primeiro lugar, a coesão social é muito menos vital para as elites de hoje do que era para as elites de séculos anteriores. Os exércitos com alistamento obrigatório foram em grande parte substituídos por forças mercenárias; os meios de comunicação têm ajudado a tornar as eleições internas “administráveis”; o consenso econômico predominante sustenta que a confiança dos investidores internacionais tem mais influência sobre o crescimento econômico do que a coesão do desenvolvimento. Para as elites do Norte, a coesão implica uma pressão sobre os imigrantes para se assimilarem melhor, em nome da “integração”. É verdade que existe uma preocupação oficial da União Europeia com a coesão social, mas na prática isso se manifesta sobretudo em termos geográficos, com o financiamento de programas de desenvolvimento nas regiões mais pobres. Durante a crise atual, que impôs uma dura austeridade econômica sobre as populações do sul da Europa, vê-se pouco interesse oficial pelo aumento da exclusão social. A coesão nacional já não é mais considerada a chave para o poder imperial – como foi nos séculos XIX e XX, quando a “revolução vinda de cima” da dinastia Meiji no Japão, e as tentativas menos bem-sucedidas de outros regimes, desde a China da dinastia Qing até o Império Otomano, a via como a base da moderna força geopolítica. Após a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento capitalista nacional coeso era o objetivo dos governantes eleitos do Japão e também dos militares de Taiwan e da Coreia do Sul, o que reverteu em sociedades industriais cujos baixos níveis de desigualdade econômica só ficavam a dever, no mundo capitalista, aos Estados europeus do bem-estar social. Para os governantes da República Popular da China, a coesão social continua a ser um critério decisivo do desempenho político. A extraordinária desigualdade produzida pela China nos últimos 35 anos – tão diferente da trajetória igualitária, de crescimento rápido do Japão, Coreia do Sul e Taiwan – torna insustentável a autoimagem da China como uma “sociedade harmoniosa”. Isso também pode ocorrer em outras partes do Sul.

No entanto, a exclusão social, a desigualdade e o deslocamento continuam a ser uma possível base para as críticas vindas de baixo, como já mostraram os recorrentes movimentos de protesto dos últimos anos. A lógica de O Capital não dá conta das atuais sociedades capitalistas, que também incluem áreas não capitalistas, com seus espaços e serviços públicos. No momento, o capitalismo está decidido a invadir todas as esferas da vida social – restringindo, ainda que não abolindo necessariamente (por enquanto), tudo que é público. Essa disseminação cria correntes de resistência, de defesa do que é público ou não comoditizado. Recentemente tem havido uma proliferação global desse tipo de movimento de protesto: contra a privatização do ensino superior no Chile e em outras partes da América Latina; contra a comercialização dos espaços públicos em Istambul; e, na Suécia, um ressentimento, mais abafado porém amplo, contra a desestatização de escolas e serviços sociais.

A mercantilização das relações sociais e o enfraquecimento, promovido pelo neoliberalismo, de qualquer noção de interesse público ou senso de responsabilidade social têm proporcionado grandes oportunidades para a corrupção. Mesmo em países como a Suécia, antes regidos por uma ética de serviço público muito forte, embora agora vilipendiada, os negócios obscuros entre a esfera pública e a privada se tornaram endêmicos. No Sul, onde a corrupção maciça é sistêmica na maioria dos países – e também na China e no Vietnã –, as campanhas em prol das “mãos limpas” são comuns, porém têm pouco impacto. Vez por outra são efetivas, como aconteceu nas manifestações de Nova Delhi. Iniciados em 2011 por Anna Hazare após a roubalheira descarada propiciada pelos Jogos da Commonwealth de 2010, os protestos acabaram se transformando no Aam Aadmi Party. Os movimentos contra a corrupção e a exploração comercial de espaços e serviços públicos tendem a crescer, já que as provocações vão se multiplicar, e também porque hoje os cidadãos são menos deferentes à autoridade, mais bem informados e mais fáceis de mobilizar por meio das mídias sociais. Um caso exemplar foi o da Turquia em 2013. Contudo, se esses protestos não integrarem configurações sociopolíticas mais amplas, eles vão permanecer – juntamente com as manifestações contra o endividamento e os despejos – dentro dos limites do sistema capitalista.

Na década de 1980, ambientalistas críticos ao capitalismo se organizaram num movimento social que ainda tem considerável expressão. Pode-se dizer que os desafios ecológicos apresentados por alterações climáticas, poluição urbana, pilhagem de oceanos e esgotamento de reservas hídricas reiniciaram a dialética entre o caráter social das forças de produção e a natureza das relações de propriedade existentes – uma dialética que a desindustrialização e o triunfo do capitalismo financeiro no Norte haviam suspendido. O impacto dessa crítica provavelmente vai depender de sua capacidade de desenvolver uma responsabilidade regulatória coletiva e ao mesmo tempo não exigir sacrifícios como o não crescimento. Uma questão crucial é a desastrosa poluição das cidades chinesas – inclusive, espetacularmente, Pequim – e de outros centros urbanos da Ásia. Na China, a poluição também está destruindo grandes áreas de solo arável. Ao exigir a regulamentação pública, o ambientalismo poderia se articular com as críticas ao capitalismo financeiro desenfreado. As escassas alianças desse tipo ressaltam a fraqueza da esquerda no Atlântico Norte – para não mencionar a obsessão chinesa, ainda praticamente incontestada, de recuperar o atraso econômico.

Uma crítica ao consumismo poderia assumir uma nova forma geracional. “1968” foi um movimento jovem – “Não confie em ninguém com mais de 30 anos” –, ao passo que nos protestos de 2011 no Mediterrâneo e no Chile, ou no Brasil em junho de 2013, muitos manifestantes estavam acompanhados dos pais. A crise devastadora do neoliberalismo na Argentina no alvorecer do século xxi acarretou vigorosos protestos de rua de aposentados, em defesa de suas pensões. Um movimento crítico poderia emergir das populações idosas da Europa e do Japão, em especial entre os mais velhos da geração de 1968. Poderiam ser protestos por qualidade de vida – serenidade, segurança, estética – em detrimento da expansão econômica e acumulação de capital. É pouco provável que ganhem muito impulso fora da Europa ou Japão, exceto, talvez, na região do rio da Prata e entre as minorias das “primeiras nações” indígenas. O consumismo parece persistir como a principal dinâmica cultural.

Articulada pelo movimento do Fórum Social Mundial, a crítica feita pelo Sul global ao capitalismo do Atlântico Norte foi levada mais adiante pelo estudioso português Boaventura de Sousa Santos em sua obra Epistemologias do Sul. Sua análise provavelmente exercerá uma influência cada vez maior devido às mudanças geopolíticas do poder planetário; mas também é provável que encontre resistência arraigada, e não apenas das elites do Norte. O consumismo está seduzindo novas e vastas camadas do Sul, que acorrem, em adoração, aos shopping centers que brotam como cogumelos. Boaventura e outros estudiosos abrem um espaçocrítico que deveria abalar a arrogância cultural do Norte. O problema deles é que se dirigem sobretudo àqueles que têm mais a perder com a sua mensagem: os modernos do Norte. No entanto, o espelho do Sul que o movimento do Fórum Social Mundial mostrou ao capitalismo do Atlântico provavelmente será incorporado ao pensamento crítico do Norte – tal como deveria ser.

Em resumo: as populações pré-capitalistas, lutando para conservar seu território e seus meios de subsistência; as massas “excedentes”, excluídas do emprego formal nos circuitos da produção capitalista; os trabalhadores fabris explorados em todas as zonas ex-industriais decadentes e outras zonas empobrecidas; novas e antigas classes médias, cada vez mais oneradas com o pagamento de dívidas às corporações financeiras – estas constituem as possíveis bases sociais para as críticas contemporâneas à ordem capitalista dominante. O avanço exigirá, quase com certeza, alianças entre essas bases e, portanto, a articulação de seus interesses. Para qual caminho, ou quais caminhos, vai pender a nova classe média na África, Ásia e América Latina? Esse será um fator determinante e vital.

Se a classe média em ascensão representou a vanguarda do desenvolvimento capitalista na Euro-América do século XIX, hoje sua função não é mais essa. O capital financeiro e as empresas multinacionais há muito tempo usurparam esse papel. Em vez disso, a classe média precisa tomar partido em sociedades fortemente polarizadas, seja ao lado dos oligarcas contra os pobres, seja com o povo contra os oligarcas. Qualquer crítica viável ao capitalismo do século XXI terá que recrutar grande parte da classe média, abordando algumas de suas preocupações e procurando articulá-las numa direção crítica, igualitária. Isso implicaria respeitar os valores clássicos da classe média de trabalho duro, autossuficiência, racionalidade e justiça. Será preciso articular a compatibilidade desses interesses com as demandas populares de inclusão e igualdade, e a sua incompatibilidade com as práticas insensatas das elites financeiras, os capitalistas de compadrio e os regimes corruptos ou autoritários. A classe média, em especial os assalariados e profissionais liberais, também está potencialmente aberta a críticas culturais feitas ao capitalismo, em especial quanto a questões ambientais e de qualidade de vida. Contudo, dada a inconstância política da classe média, qualquer virada progressista vai exigir a mobilização de considerável força popular entre as duas primeiras correntes sociais já mencionadas: as populações pré-capitalistas invadidas ou marginalizadas, e os trabalhadores que procuram se defender na esfera da produção.

10 de fevereiro de 2014

Uma reputação valiosa

Depois que Tyrone Hayes disse que um produto químico era prejudicial, seu fabricante o perseguiu.

Rachel Aviv 


Hayes dedicou os últimos quinze anos ao estudo da atrazina, um herbicida amplamente utilizado fabricado pela Syngenta. As notas da empresa revelam que ela lutou para entendê-lo e planejou maneiras de desacreditá-lo. Fotografia de Dan Winters

Tradução / Em 2001, sete anos depois de entrar para o corpo docente da Universidade da Califórnia em Berkeley, Tyrone Hayes parou de falar sobre sua pesquisa com gente em quem não confiava. Ele instruiu os estudantes de seu laboratório, onde criava 3 mil sapos, a desligar o telefone se ouvissem um estalido, sinal de que um terceiro poderia estar na linha. Notou que outros cientistas pareciam ter uma lembrança diferente dos acontecimentos, então começou a levar um gravador para as reuniões. “O segredo para viver uma paranoia feliz e bem-sucedida”, ele gostava de dizer, “é ficar de olho em seus perseguidores.”

Três anos antes, a Syngenta, uma das maiores empresas de agronegócio do mundo, pedira a Hayes que realizasse experimentos com o herbicida atrazina, usado em mais da metade das plantações de milho dos Estados Unidos. Hayes tinha 31 anos e já havia publicado vinte artigos sobre endocrinologia de anfíbios. David Wake, professor no departamento de Hayes, declarou que o colega “talvez tenha sido o sujeito com mais potencial nesse campo”. Mas, quando Hayes descobriu que a atrazina podia retardar o desenvolvimento sexual de sapos, suas relações com a Syngenta se desgastaram e, em novembro de 2000, ele pôs fim à parceria com a empresa.

Hayes continuou a estudar a atrazina por conta própria, e logo se convenceu de que representantes da Syngenta o seguiam em conferências mundo afora. Ele temia que a empresa estivesse orquestrando uma campanha para destruir sua reputação. Reclamou que, sempre que dava palestras públicas, havia um desconhecido no fundo da sala tomando notas. Numa viagem a Washington, em 2003, passou cada noite num hotel diferente. Ainda mantinha contato com alguns cientistas da Syngenta e, depois de perceber que eles conheciam detalhes de seu trabalho e de sua agenda, suspeitou que estivessem lendo seus e-mails. Para confundi-los, pediu a um aluno que escrevesse mensagens falsas do computador de sua sala enquanto ele estava fora. Mandou cópias de dados e anotações para seus pais em caixas lacradas. Num e-mail para um pesquisador da Syngenta, ele escreveu que tinha “arriscado minha reputação, meu nome… há quem diga que a minha vida por aquilo que eu pensava (e agora sei) ser verdade”. Alguns cientistas já tinham feito experimentos que prenunciavam o trabalho de Hayes, mas ninguém observara efeitos tão extremos. Em outro e-mail para a Syngenta, ele admitiu que poderia parecer que estivesse sofrendo um “complexo de Napoleão” ou “delírios de grandeza”.

Por anos, apesar de seus feitos, Hayes se sentia como um intruso. Em ambientes acadêmicos, tinha a sensação de que os colegas operavam segundo um código de maneiras afetado: falavam de maneira formal, criando uma imagem de autoridades abnegadas, e raramente admitiam que não sabiam alguma coisa. Ele tinha crescido em Columbia, na Carolina do Sul, num bairro onde menos de 40% dos habitantes terminam o ensino médio. Até a 6ª série, quando foi aceito num programa para crianças bem-dotadas e foi estudar num outro bairro, ele nunca tinha falado com uma pessoa branca da sua idade. Ele e os amigos conversavam entre si a respeito de como “os brancos fazem isso, e os brancos fazem aquilo”, fingindo que sabiam. Depois que trocou de escola e seguiu cursos avançados, as crianças negras faziam troça dele: “Ah, ele pensa que é branco.”

Tyrone Hayes tinha fascínio pela ideia de metamorfose, e passou boa parte da adolescência capturando girinos e sapos e cruzando espécies diferentes de gafanhotos. Criava larvas de sapos no alpendre da casa dos pais, e examinava como lagartos reagem a mudanças de temperatura (usando um secador de cabelos) e de iluminação (colocando os bichos na casinha do cachorro). Seu pai, instalador de carpetes, olhava para os experimentos, balançava a cabeça e dizia: “Há uma linha tênue entre o gênio e o idiota.”

Hayes ganhou uma bolsa para Harvard e, em 1985, iniciou o que chama de “os piores quatro anos” de sua vida. Muitos dos outros estudantes negros tinham frequentado escolas particulares e vinham de famílias afluentes. Ele se sentia deslocado e despreparado – foi posto em período probatório –, até que se aproximou de um professor de biologia que o estimulou a trabalhar em seu laboratório.

Com 1,60 metro e magro, Hayes se destacava vestindo roupas espalhafatosas, como Prince. O jornal estudantil Harvard Crimson, numa matéria sobre uma festa no campus, escreveu que ele estava mais para a “atmosfera rock-’n’-ready da Danceteria”, uma casa noturna de Nova York famosa na época. Até pensou em largar o curso, mas começou a sair com uma colega de turma, Katherine Kim, uma estudante de biologia de origem coreana do Kansas. Casou-se com ela dois dias depois da formatura.

Eles se mudaram para Berkeley, onde Hayes entrou no programa de biologia integrativa. Terminou o doutorado em três anos e meio e foi imediatamente contratado pelo departamento. “Ele era uma força da natureza – incrivelmente talentoso e trabalhador”, conta Paul Barber, um colega que agora é professor na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Hayes se tornou um dos poucos professores titulares negros no país. Estava à frente do laboratório com maior diversidade racial do departamento, atraindo estudantes que eram os primeiros de suas famílias a frequentar uma universidade. Nigel Noriega, um ex-doutorando, disse que o laboratório era uma “zona de conforto” para estudantes que “estavam sufocados em Berkeley” por se sentirem alijados da cultura acadêmica.

Hayes havia se acostumado aos constantes elogios dos colegas, mas, quando a Syngenta pôs seu trabalho em dúvida, voltou a se atormentar com ansiedades antigas. Acreditava que a empresa estivesse tentando isolá-lo de outros cientistas e “jogar com minhas inseguranças – o medo de não ser bom o suficiente, de ser considerado uma fraude por todos”, contou. Disse a colegas que suspeitava que a empresa tinha “grupos de discussão” para explorar suas vulnerabilidades. Roger Liu, que trabalhou no laboratório de Hayes por uma década, como estagiário de iniciação científica e como doutorando, disse: “No começo, fiquei bem preocupado com sua segurança. Mas não conseguia discernir onde terminava a realidade e começava o exagero.”

Liu e vários outros ex-alunos disseram desconfiar das acusações de Hayes até o meio do ano passado, quando uma reportagem na Environmental Health News (em parceria com a 100Reporters) publicou documentos internos da Syngenta. Centenas de circulares, anotações e e-mails tinham vindo a público depois do acordo judicial feito pela empresa, em 2012, em duas ações coletivas movidas por 23 cidades do Centro-Oeste que a acusavam de “ocultar a verdadeira natureza perigosa da atrazina” e de contaminar a água potável. “O trabalho de Tyrone nos deu a base científica para o processo”, disse Stephen Tillery, o advogado que defendeu as causas.

Hayes dedicara os quinze anos anteriores ao estudo da atrazina, e nesse meio tempo cientistas do mundo todo ampliaram seus achados, sugerindo que o herbicida está associado a defeitos de nascimento em humanos e animais. Os documentos da empresa mostram que, enquanto Hayes estava estudando a atrazina, a Syngenta estava estudando Hayes, como ele suspeitava. O departamento de comunicação da empresa havia esboçado uma lista com quatro objetivos. O primeiro era “desacreditar Hayes”. Num caderno espiral, a gerente de comunicação da Syngenta, Sherry Ford, que se referia a Hayes pelas iniciais, escreveu que a empresa poderia “evitar que os dados de TH fossem citados mostrando que ele não era confiável”. Ele era assunto frequente de conversa em reuniões da Syngenta. A empresa buscava formas de “explorar as falhas/problemas de Hayes”. “Se envolvido em escândalo, os verdes vão abandonar TH”, escreveu Sherry Ford. Ela observou que Hayes “cresceu num mundo [Carolina do Sul] que não o aceitava”, “precisa ser adulado”, “não dorme”, estava “marcado pela vida toda”. “Quais as motivações de Hayes? – pergunta básica”, registrou.

A Syngenta, que tem sede na Basileia, na Suíça, vende mais de 14 bilhões de dólares por ano em sementes e pesticidas, e financia pesquisas em cerca de 400 instituições acadêmicas no mundo todo. Quando Hayes concordou em fazer experimentos para a empresa (que na época era parte de uma corporação maior, a Novartis), os estudantes de seu laboratório disseram estar preocupados com o fato de que empresas de biotecnologia estavam “comprando universidades”; segundo eles, o financiamento da indústria comprometeria a objetividade da pesquisa. Hayes garantiu-lhes que seus honorários, 125 mil dólares, fariam do laboratório um centro mais rigoroso. Ele poderia empregar mais estudantes, comprar equipamento novo e criar mais sapos. Embora o laboratório tivesse bom financiamento, o amparo federal à pesquisa estava se tornando cada vez mais instável e, tal qual muitos acadêmicos e administradores, ele buscava novas fontes de renda. “Entrei nisso como se fosse um pintor fazendo um serviço”, Hayes me disse. “Você encomenda a tarefa, eu cumpro o combinado e você faz o que quiser com os resultados. É sua responsabilidade, não minha.”

A atrazina é o segundo herbicida mais usado nos Estados Unidos; suas vendas no país ficam em torno de 300 milhões de dólares por ano. (O glifosato, produzido pela Monsanto, é o herbicida mais popular.) Introduzida em 1958, os custos de produção são baixos e ela controla uma ampla gama de ervas daninhas. Um estudo da EPA, a Agência de Proteção Ambiental americana, descobriu que sem a atrazina a safra nacional de milho diminuiria 6%, causando uma perda anual de quase 2 bilhões de dólares. Mas o herbicida se degrada lentamente no solo e com frequência escoa em riachos e lagos, onde não é prontamente dissolvido. A atrazina é um dos poluentes mais comuns da água potável; estima-se que 30 milhões de americanos estejam expostos a pequenas quantidades da substância.

Em 1994, a EPA, preocupada com os efeitos da atrazina na saúde, anunciou que instauraria uma revisão científica do produto. A Syngenta reuniu um painel de cientistas e professores – por intermédio de uma empresa de consultoria chamada EcoRisk – para estudar o herbicida. Hayes acabou integrando-se ao grupo. Seu primeiro experimento mostrou que os girinos machos expostos à atrazina desenvolviam menos músculos em torno das cordas vocais, e ele formulou a hipótese de que a substância podia reduzir os níveis de testosterona. “Tenho perdido muito sono por causa disso”, escreveu a um membro do painel da EcoRisk, no verão de 2000. “Estou ciente das implicações e evidentemente quero me assegurar de que foi feito e confirmado tudo que é possível.”

Depois de uma teleconferência, ele se surpreendeu com a forma como a empresa criticava o que lhe parecia serem aspectos corriqueiros do trabalho. Hayes queria repetir e validar seus experimentos, e reclamava que a empresa estava limitando seu avanço e que cientistas independentes publicariam resultados semelhantes antes dele. Decidiu abandonar o painel, enviando uma carta em que dizia que não queria ser “furado”. “Temo que minha reputação seja prejudicada se eu mantiver essa parceria com a Novartis e a consequente baixa produtividade”, escreveu. “Parecerá a meus colegas que colaborei com um plano para esconder dados importantes.”

Hayes repetiu os experimentos com fundos de Berkeley e da National Science Foundation. Depois, escreveu ao painel: “Embora não queira alardear isso até ter todos os dados analisados e decodificados, sinto que devo avisá-los de que algo muito estranho está acontecendo com esses animais.” Após dissecar os sapos, ele percebeu que alguns não podiam ser claramente identificados como machos ou fêmeas: tinham tanto testículos como ovários. Outros apresentavam múltiplos testículos deformados.

Em janeiro de 2001, funcionários da Syngenta e membros do painel da EcoRisk viajaram a Berkeley para discutir os novos achados de Hayes. A Syngenta pediu uma reunião particular, mas Hayes insistiu na presença de seus alunos, de alguns colegas e da mulher. Ele havia mantido um contato fraterno com o painel – apreciara as longas corridas em companhia do cientista que o supervisionava – e, numa grande sala no Museu de Zoologia de Vertebrados de Berkeley, começou a reunião como se fosse o anfitrião de uma conferência acadêmica. Estava de gravata nova e havia encomendado almoço para todos.

Depois do almoço de confraternização, a Syngenta apresentou um palestrante convidado, um consultor de estatística, que listou diversos erros no relatório de Hayes e concluiu que os resultados não eram estatisticamente significantes. A mulher de Hayes, Katherine Kim, disse que o sujeito parecia estar tentando “fazer Tyrone parecer o mais idiota possível”. Wake, o professor de biologia, comentou que os participantes do painel da EcoRisk pareciam cada vez mais desconfortáveis. “Eles tinham experiência suficiente para saber que as questões que o consultor de estatística estava levantando eram triviais e ridículas”, disse. “Algumas imperfeições foram apresentadas como se fossem o fim do mundo. Sou pesquisador em meios acadêmicos há quarenta anos, e nunca passei por nada semelhante. Eles queriam pegar Tyrone.”

Mais tarde Hayes enviou e-mails para três dos cientistas, dizendo: “Fui insultado, me senti encostado na parede e, na verdade, senti que havia uma movimentação desonesta e antiética.” Quando ele explicou o que tinha acontecido a Theo Colborn, a pesquisadora que popularizou a teoria de que produtos químicos industriais poderiam alterar hormônios, ela aconselhou: “Não volte para casa duas vezes pelo mesmo caminho.” Colborn estava convencida de que haviam grampeado sua sala e que representantes da indústria a seguiam. Ela ainda disse a Hayes que “olhasse sempre para trás” e tivesse cuidado com quem deixasse entrar no laboratório. “Você tem que se proteger”, avisou.

Hayes publicou seu trabalho sobre a atrazina na revista Proceedings of the National Academy of Sciences um ano e meio depois de deixar o painel. No texto, sustentou que o que chamava de “hermafroditismo” nos sapos fora induzido por exposição à atrazina em níveis trinta vezes mais baixo do que a EPA permite na água. Ele supôs que a substância poderia estar ligada ao declínio de populações de anfíbios, um fenômeno observado no mundo todo.

Numa mensagem que mandou na véspera da publicação, ele felicitou os estudantes de seu laboratório pela “postura ética” ao continuarem o trabalho por conta própria. “Nós (e nossos princípios) fomos testados, e acredito que não apenas passamos como superamos as expectativas”, escreveu. “A ciência é um princípio e um processo de busca da verdade. A verdade não pode ser comprada e, portanto, a verdade não pode ser alterada por dinheiro. Ser professor não é uma carreira, mas o propósito de uma vida. As pessoas com quem trabalho diariamente são exemplo disso e me lembram dessa promessa.”

Ele e seus alunos continuaram o trabalho, viajando para regiões agrícolas do Centro-Oeste, coletando sapos em lagoas e lagos, e expedindo 300 baldes de água congelada para Berkeley. Em artigos na Nature e na Environmental Health Perspectives, Hayes relatou que tinha encontrado sapos com anormalidades sexuais em locais contaminados por atrazina em Illinois, Iowa, Nebraska e Wyoming. “Agora que percebi onde nos metemos, não posso parar”, escreveu a um colega. Hayes começou a chegar ao laboratório às três e meia da manhã e lá permanecia por catorze horas. Ele tinha dois filhos pequenos, que às vezes o ajudavam colando códigos coloridos em frascos.

De acordo com e-mails trocados na empresa, a Syngenta estava preocupada com a pesquisa de Hayes. O departamento de comunicação compilou um banco de mais de 100 “apoiadores externos”, incluindo 25 professores, que poderiam defender a atrazina ou agir como “porta-vozes contra Hayes”. Sugeriu ainda que a empresa “comprasse ‘Tyrone Hayes’ como termo de busca na internet, de maneira que, sempre que alguém procurar por Tyrone, a primeira coisa que verá será o nosso material”. Mais tarde a proposta foi expandida para incluir as combinações “anfíbio hayes”, “atrazina sapos” e “feminização de sapos”.

Em junho de 2002, dois meses depois da primeira publicação de Hayes sobre a atrazina, a Syngenta soltou um release afirmando que três estudos haviam fracassado em replicar o trabalho dele. Numa carta ao editor da Proceedings of the National Academy of Sciences, oito cientistas do painel da EcoRisk escreveram que o estudo de Hayes dava “pouca importância à avaliação de causalidade”, omitia detalhes estatísticos, empregava o termo “dose” de forma errada, fazia referências vagas e ingênuas, além de ter errado na grafia de uma palavra. Eles disseram que a declaração de Hayes de que seu artigo tinha “implicações significativas para a saúde ambiental e pública” não fora “cientificamente demonstrada”.

Steven Milloy, um colunista de ciência freelancer que dirige uma organização sem fins lucrativos à qual a Syngenta deu dezenas de milhares de dólares, escreveu um artigo para a Fox News intitulado “Freaky-Frog Fraud” [O logro do sapo ogro], que atacava o artigo de Hayes na Nature, dizendo que não havia uma relação clara entre a concentração de atrazina e o efeito nos sapos. Milloy caracterizou Hayes como um “cientista lixo” e descartou suas conclusões “esfarrapadas” como “apenas mais um dos truques de Hayes”.

Críticas desmedidas de experimentos científicos se tornaram parte do que se conhece como campanha da “pseudociência”, um esforço de grupos de interesse e indústrias para retardar o ritmo da regulamentação. David Michaels, secretário-assistente de Trabalho para Segurança e Saúde Ocupacional, em seu livro Doubt Is Their Product [A Dúvida É Seu Produto] (2008), escreveu que as corporações desenvolveram estratégias sofisticadas para “manufaturar e magnificar a incerteza”.

Nos anos 80 e 90, a indústria do tabaco resistiu à regulamentação questionando as pesquisas científicas sobre o tabagismo passivo. Muitas empresas adotaram essa tática. “A indústria aprendeu que debater a ciência é mais fácil e mais eficaz do que debater a política pública”, escreveu Michaels. “Em vários campos da ciência, ano após ano, conclusões que poderiam embasar a regulamentação são sempre contestadas. Dados com animais são considerados não relevantes; dados de humanos, não representativos, e dados de exposição [das pessoas ou de cobaias a produtos], não confiáveis.”

No verão de 2002, dois cientistas da EPA visitaram o laboratório de Hayes e revisaram seus dados sobre a atrazina. Thomas Steeger, um deles, disse a Hayes: “Sua pesquisa tem potencial de afetar o equilíbrio de risco e benefício de um dos pesticidas mais controvertidos nos Estados Unidos.” Mas uma organização chamada Center for Regulatory Effectiveness [Centro para Eficácia Regulatória] solicitou que a EPA ignorasse os achados de Hayes. “Hayes matou e continua a matar milhares de sapos em testes inválidos, sem valor comprovado”, dizia a petição. O centro argumentou que os estudos de Hayes violavam a Lei da Qualidade de Dados, aprovada em 2000, que exige que decisões regulatórias se apoiem em estudos que atendam a altos padrões de “qualidade, objetividade, utilidade e integridade”. Quem dirige o centro é um lobista da indústria e consultor da Syngenta, Jim Tozzi, que propôs a redação da Lei da Qualidade de Dados para a congressista que a apresentou.

A EPA acatou a Lei da Qualidade de Dados e reviu sua Avaliação de Risco Ambiental, deixando claro que distúrbios hormonais não seriam um motivo legítimo para restringir o uso de uma substância até que “protocolos de teste apropriados tenham sido estabelecidos”. Steeger disse a Hayes que estava incomodado com a circularidade da crítica do centro. “A posição deles me lembra o argumento apresentado pelo filósofo [George] Berkeley, que atacou o empirismo dizendo que a confiança na observação científica é uma farsa, já que o elo entre observações e conclusões é intangível e, portanto, não mensurável”, escreveu num e-mail.

Mesmo assim, Steeger parecia resignado às frustrações da ciência regulatória e jogou água de leve no idealismo de Hayes. Quando este reclamou que a Syngenta não relatara com presteza seus achados sobre hermafroditismo, Steeger respondeu que era “lamentável mas não incomum que os que pedem o registro [de produtos] se ‘aboletem’ sobre dados que podem ser considerados adversos à percepção pública sobre seus produtos”. Ele escreveu que “a ciência pode ser manipulada para atender certos objetivos. O que você pode fazer é praticar a ‘suspensão de descrença’”. (A EPA diz que “não há indicação de que informações tenham sido retidas de forma imprópria nesse caso”.)

Depois de consultar colegas em Berkeley, Hayes decidiu que, em vez de ficar parado assistindo à Syngenta achincalhar seu trabalho, ele faria uma “manobra preventiva”. Apareceu em reportagens na revista Discover e no jornal Chronicle de São Francisco dizendo que a pesquisa científica da Syngenta não era objetiva. Ambos os artigos focavam sua biografia pessoal, começando pela cor da pele e chegando ao penteado: na época, ele usava o cabelo trançado. Hayes não disfarçou a vaidade.

A objetividade científica exige aquilo que o filósofo Thomas Nagel chamou de uma “visão a partir de lugar nenhum”, mas Hayes continuou a chamar atenção para si, fazendo comentários jocosos como “Tyrone só pode ser Tyrone”. Ele apresentou a Syngenta como vilã, mas não chegou a se encaixar no papel de herói. Era hiperativo e um pouco agitado – sempre parecia apressado ou a ponto de esquecer de fazer algo –, e encarou com empenho juvenil a ideia de derrubar os poderosos.

Os ativistas ambientais elogiaram o trabalho de Hayes e o ajudaram a atrair a atenção da imprensa. Mas estavam preocupados com seu estilo contundente. Um dos fundadores do Environmental Working Group [Grupo de Trabalho Ambiental], uma organização de pesquisa sem fins lucrativos, lhe disse para “encerrar o que estiver fazendo e aproveitar para realmente elaborar um projeto”, ou “você vai levar um pé na bunda”. Steeger comentou que o estilo belicoso o distrairia de sua pesquisa. “Você tem tempo e dinheiro para entrar em batalhas em que está em franca minoria e, para ser sincero, deslocado socialmente?”, perguntou. “A maioria das pessoas preferiria abreviar o tempo no purgatório; não conheço ninguém que entre por vontade própria no inferno.”

Hayes trabalhara a vida toda para construir sua reputação científica e agora ela parecia à beira do abismo. “Não posso lhe explicar em termos razoáveis o que isso significa para mim”, disse a Steeger. Ele fez o que pôde para provar que os experimentos da Syngenta não tinham replicado seus estudos: eles utilizaram uma população diferente de animais, criados em tipos diferentes de tanques, mais agrupados, em temperaturas mais frias e com outra tabela horária de alimentação. Em pelo menos três ocasiões ele propôs aos cientistas da Syngenta partilhar os dados. “Se realmente queremos testar a reprodutibilidade [do experimento], vamos compartilhar animais e soluções”, escreveu.

No início de 2003, Hayes foi cogitado para um cargo na Nicholas School of the Environment, na Universidade Duke. Ele visitou o campus três vezes e a universidade chegou a chamar um corretor imobiliário para mostrar casas para ele e sua mulher. Quando a Syngenta descobriu que Hayes poderia se mudar para a Carolina do Norte, onde fica sua sede de proteção de lavouras, Gary Dickson – vice-presidente de avaliação global de risco da empresa, que um ano antes estabelecera uma dotação de 50 mil dólares, financiada pela Syngenta, para a Nicholas School – entrou em contato com um diretor em Duke. De acordo com documentos revelados nas ações coletivas contra a empresa, Dickson informou o diretor das “atuais relações entre o dr. Hayes e a Syngenta”. A empresa “queria proteger nossa reputação em nossa comunidade e entre nossos funcionários”.

Havia vários candidatos para o cargo na Duke e, quando soube que não foi escolhido, Hayes concluiu que a influência da Syngenta havia pesado. Richard di Giulio, um professor da Duke que recebera Hayes em sua primeira visita, disse ter se irritado com a suposição do colega: “Uma modesta doação de 50 mil dólares não teria poder sobre uma contratação. Não há hipótese.” Mas acrescentou: “Não me surpreende que a Syngenta lamentasse a vinda de Hayes para a Duke, já que estamos a uma hora de estrada deles.” Ele comentou que o conflito de Hayes com a Syngenta era um exemplo extremo das brigas que costumam ocorrer na ciência ambiental. Com a diferença que o “debate científico transbordou para a vida emocional de Hayes”.

Em junho de 2003, Hayes foi a Washington às próprias expensas para apresentar seu trabalho numa audiência da EPA sobre a atrazina. A agência tinha avaliado dezessete estudos. Doze experimentos haviam sido financiados pela Syngenta, e todos exceto dois mostravam que a substância não tinha efeitos no desenvolvimento sexual de sapos. Os experimentos restantes, de Hayes e de pesquisadores de duas universidades diferentes, indicavam o oposto.

Numa apresentação em PowerPoint, Hayes revelou uma mensagem pessoal que lhe fora enviada por um dos cientistas do painel da EcoRisk, um professor na Texas Tech. “Concordo que o que importa é que todos os envolvidos encarem (e parem de minimizar) o fato de que laboratórios independentes demonstraram que a atrazina atuou na diferenciação das gônadas de sapos. Não há como negar.”

A EPA descobriu que todos os dezessete estudos sobre a atrazina, incluindo o de Hayes, apresentavam falhas metodológicas – contaminação de controles, variabilidade nos pontos de medição, criação imperfeita dos animais – e pediu que a Syngenta financiasse um experimento abrangente o bastante para produzir resultados mais definitivos. Darcy Kelley, integrante da comissão de conselheiros científicos da EPA e professora de biologia na Universidade Columbia, disse que, na época, “não achava que a EPA havia tomado a decisão correta”.

Os estudos de cientistas da Syngenta exibiam falhas que “realmente punham em dúvida sua capacidade de conduzir os experimentos. Eles não conseguiam replicar efeitos tão fáceis como somar dois mais dois”. Ela achava que os experimentos de Hayes eram mais respeitáveis, mas sua demonstração do mecanismo biológico que causava as deformidades não a convencia.

A EPA aprovou o uso continuado da atrazina em outubro de 2003, mesmo mês em que a Comissão Europeia decidiu retirá-la do mercado.[1] A União Europeia costuma ser mais atenta aos riscos ambientais, preferindo a cautela à incerteza. Nos Estados Unidos, questões científicas pendentes justificam adiamentos em decisões regulatórias. Desde meados dos anos 70, a EPA publicou restrições ao uso de apenas cinco substâncias industriais entre as mais de 80 mil dispersas no ambiente.

A indústria tem um papel determinante no processo regulatório norte-americano – ela pode processar os reguladores se houver erros nos dados científicos – e as análises de custo-benefício são centrais nas decisões: atribui-se um valor monetário a doenças, deficiências e vidas abreviadas, e ele é comparado aos benefícios de se manter uma substância em uso.

Lisa Heinzerling – conselheira-chefe para políticas do clima na EPA em 2009 e administradora associada do departamento de políticas públicas em 2009 e 2010 – disse que os modelos de custo-benefício parecem “objetivos e neutros, uma forma de nos livrarmos do caos da política”. Mas os algoritmos complexos “acabam sendo permissivos em relação a riscos tremendos”. Ela acrescentou que a influência do Departamento de Gerenciamento e Orçamento, que fiscaliza decisões regulatórias importantes, ampliou-se nos últimos anos. “Uma decisão passa por anos de revisões científicas e análises de custo e benefício, e por fim sucumbe no último estágio”, disse. “Isso tem um efeito terrível, desmoralizante na cultura da EPA.”

Em 2003, uma comissão de desenvolvimento de produtos da Syngenta na Basileia aprovou uma estratégia para manter a atrazina no mercado “pelo menos até 2010”. Numa apresentação em PowerPoint, o gerente global de produtos da Syngenta explicou que “precisamos da atrazina para assegurar nossa posição no mercado de milho. Sem ela não podemos defender e ampliar nosso negócio nos Estados Unidos”. Sherry Ford, a gerente de comunicação, escreveu em seu caderno que a empresa “não deveria começar a eliminar a atz [atrazina] até sabermos mais sobre” outro herbicida da Syngenta, o paraquat, que também tem provocado controvérsia, por causa de estudos mostrando que pode estar associado ao mal de Parkinson. Ela observou que a atrazina “desvia a atenção de outros produtos”.

A Syngenta instituiu “reuniões de atrazina” semanais depois que a primeira ação coletiva foi iniciada, em 2004. Às reuniões compareciam toxicologistas, o conselho da empresa, a equipe de comunicação e o chefe de assuntos regulatórios. Para abafar a publicidade negativa trazida pelo processo judicial, o grupo discutia como poderia invalidar a pesquisa de Hayes. Sherry Ford documentava comportamentos bizarros (“Não tirou o casaco”) ou frases ditas por ele (“Esta linha está grampeada?”). “Se TH quisesse se sair bem, e se tivesse os meios”, escreveu, “ele os teria mostrado quando foi solicitado.” Ela comentou que Hayes estava “se envolvendo demais com os verdes” e procurava maneiras de fazê-lo “revelar suas verdadeiras simpatias”.

Em 2005, Sherry Ford elaborou uma longa lista de tópicos para desacreditá-lo: “Ter seu trabalho auditado por terceiros”; “Pedir a periódicos a exclusão de artigos”; “Plantar armadilha com vistas a estimulá-lo a entrar na Justiça”; “Investigar financiamento”; “Investigar mulher”. As iniciais de diferentes funcionários da Syngenta estavam registradas depois de cada item, supostamente porque haviam sido encarregados de tratar do assunto. Outro conjunto de ideias, discutido em várias reuniões, era providenciar “contestação sistemática em todas as apresentações de TH”. Uma das consultoras de comunicação da empresa disse num e-mail que ela queria obter o cronograma de palestras de Hayes, assim a Syngenta poderia “começar a atingir plateias potenciais com a Planilha Erro versus Verdade”, que forneceria “provas irrefutáveis contra suas teorias imundas”. (A empresa diz que muitos dos documentos revelados nos processos judiciais dizem respeito a ideias que nunca foram implementadas.)

Com o objetivo de redirecionar a atenção para os benefícios financeiros da atrazina, a Syngenta pagou a Don Coursey, um economista que é professor titular da Escola Harris de Políticas Públicas, na Universidade de Chicago, 500 dólares por hora para estudar em que medida a proibição do herbicida afetaria a economia. Em 2006, a empresa fez chegar a Coursey dados e uma “pilha de estudos”, e editou o artigo, apresentado como um texto de trabalho da Escola Harris. (Coursey acabou revelando que havia sido financiado pela Syngenta.) Depois de entregar um esboço, Coursey recebeu um e-mail recomendando-lhe que trabalhasse mais para obter uma “clara exposição de suas conclusões a partir de sua análise”. Ele mais tarde anunciou seus achados num evento do Clube Nacional da Imprensa em Washington e disse à plateia que havia um “recado básico: a proibição nacional da atrazina terá um efeito absolutamente devastador sobre a economia norte-americana do milho”.

Antes professor-associado, em 2003 Hayes foi promovido a titular, um feito que o fez embarcar numa leve depressão. Passara a década anterior medindo sua autoestima a partir de uma série de marcos acadêmicos, todos alcançados. Nesse momento se sentia carente de objetivo. Sua mulher lhe disse que poderia vê-lo acomodado à vida de um “cientista normal, mediano, bem-sucedido”. Mas a ideia de “escrever artigos e livros que todos apenas trocamos uns com os outros” não o entusiasmava.

Ele passou a proferir mais de cinquenta palestras por ano, não só para audiências científicas, mas em institutos de políticas públicas, departamentos de história, clínicas de saúde feminina, escolas de ensino médio; para profissionais de preparo de alimentos e fazendeiros. Quase nunca recusava um convite, não importava a distância. Dizia às plateias que estava desafiando as instruções de seu orientador de doutorado, que lhe havia dito: “Deixe a ciência falar por si.” Ele tinha um faro para contar histórias – escolhia frases como “cena do crime” e “quimicamente castrado” – e parecia se deleitar com detalhes sobre os conflitos de interesse da Syngenta, apresentando teorias como se estivesse contando fofoca aos amigos. (A Syngenta escreveu uma carta a Hayes e seu diretor em Berkeley, apontando imprecisões: “Conforme formos descobrindo erros em suas apresentações, voltaremos a entrar em contato, podem esperar.”)

Em suas palestras, Hayes percebeu que sempre havia um ou dois homens na audiência mais bem vestidos do que os outros cientistas. Eles faziam perguntas que pareciam ter sido armadas para constrangê-lo: por que ninguém consegue replicar a sua pesquisa? Por que você não compartilha seus dados? Um ex-aluno, Ali Stuart, disse que “onde quer que Tyrone fosse, tinha esse cara que fazia perguntas que tiravam sarro dele”.

Hayes havia chegado a considerar que alguns dos cientistas que trabalhavam com a Syngenta eram seus amigos, mas passou a se dirigir a eles de modo desafiador. Escrevia e-mails em massa, informando as palestras programadas e oferecendo dicas sobre como desacreditá-lo. “Você não pode se aproximar da presa pensando como um predador”, escreveu. “Você precisa se transformar em caça.” Descreveu uma viagem à Carolina do Sul e sua sensação de estar fora do lugar quando “um amigo de infância foi me encontrar para contar quem tinha sido morto, quem estava no crack, quem foi preso”. “Aprendi a falar como vocês (melhor do que vocês… como admitem), escrever como vocês (mais uma vez melhor)… mas vocês não conhecem ninguém como eu… quero ver passarem um dia no meu mundo”, escreveu. Depois de ver uma mensagem na qual um lobista o caracterizava como “negro e bastante articulado”, ele começou a assinar seus e-mails como “Tyrone B. Hayes, Ph.D., a.b.m.”, numa referência a articulate blackman [homem negro articulado].

A Syngenta estava preocupada com os e-mails do cientista e encomendou a um prestador de serviços um “perfil psicológico” de Hayes. Em suas anotações, Sherry Ford o descrevia como “bipolar/maníaco-depressivo” e “paranoico esquizo & narcisista”. Roger Liu, aluno de Hayes, disse que achava que ele escrevia as mensagens para aliviar a ansiedade. Hayes muitas vezes mostrava os e-mails aos estudantes, que gostavam de seu senso de humor rebelde. Segundo Liu, “Tyrone tinha todos esses tietes no laboratório torcendo por ele. Eu era o único dizendo: ‘Cara, não provoque. Não cutuque a fera’”.

A Syngenta intensificou sua campanha de imagem em 2009, depois que ativistas, alardeando “novas descobertas”, desenvolveram o que a empresa chamou de “nova linha de ataque”. Naquele ano, um artigo na Acta Paediatrica, revisando registros nacionais para 30 milhões de nascimentos, descobriu que as crianças concebidas entre abril e julho – quando a concentração de atrazina (misturada com outros pesticidas) na água é mais alta – apresentavam risco maior de nascer com defeitos genitais.

O autor do artigo, Paul Winchester, professor de pediatria na Escola de Medicina da Universidade de Indiana, recebeu uma intimação da Syngenta, exigindo que entregasse todos os e-mails que havia escrito sobre a atrazina na década anterior. A estratégia de comunicação da empresa foi descrever o estudo como “ciência picareta” que não passava no “teste da gargalhada”. “Não está em questão se comprovei ou não as hipóteses. Claro que não provei! Epidemiologistas não tentam provar nada – eles procuram problemas”, disse Winchester.

Alguns meses depois do artigo de Winchester, o New York Times publicou uma pesquisa que sugeria que os níveis de atrazina com frequência ultrapassam o limite máximo permitido na água potável. O artigo mencionava estudos recentes nas revistas Environmental Health Perspectives e Journal of Pediatric Surgery, que demonstravam que mães que vivem perto de fontes de água com atrazina apresentavam maior probabilidade de ter bebês abaixo do peso ou com um defeito no qual intestinos e outros órgãos ficam salientes.

No dia em que o artigo saiu, a Syngenta planejou “examiná-lo linha por linha e encontrar todas as: 1) imprecisões e 2) deturpações. Transformar isso num gráfico simples”. A empresa conseguiria “alguém de fora confiável para fazer o mesmo”. Elizabeth Whelan, presidente do Conselho Americano de Ciência e Saúde, que pediu 100 mil dólares à Syngenta naquele ano, apareceu na rede de televisão MSNBC e declarou que a reportagem do Times não se escorava em ciência. “Sou uma profissional de saúde pública”, disse. “Fico muito incomodada, mesmo, ao deparar com a capa da edição de domingo do New York Times trazendo uma matéria sobre um risco falso.”

O departamento de comunicação da Syngenta escreveu artigos de opinião sobre os benefícios da atrazina e sobre a debilidade científica de seus críticos, e então os enviou para “aliados externos” que concordaram em “assinar” os textos, publicados no Washington Times, no Rochester Post-Bulletin, no Des Moines Register e no St. Cloud Times. Quando alguns textos na “linha de produção de opinião” ficaram agressivos demais, um consultor da empresa avisou que “o uso de uma certa linguagem nessas peças pode sugerir sua procedência, o que deve ser evitado a qualquer custo”.

Depois da reportagem do New York Times, a Syngenta contratou uma consultoria de comunicação, a White House Writers Group, que já representou mais de sessenta das empresas que saíram em listas dos 500 da Fortune. Num e-mail para a Syngenta, Josh Gilder, um diretor da firma e antigo redator de discursos para Ronald Reagan, escreveu: “Precisamos começar a lutar nossa própria guerra.”

Avisando que a proibição da atrazina seria “devastadora para as economias” de regiões rurais, a empresa tentou criar uma “situação em que a nova liderança política da EPA fique cada vez mais isolada”. A firma organizou “jantares exclusivos com pessoas influentes de Washington” e tentou “induzir membros do Congresso” a contestar a argumentação científica que a EPA arrazoaria numa revisão da atrazina prestes a ser divulgada. Numa circular descrevendo essa estratégia, o White House Writers Group afirmou que, “no que diz respeito à ciência, é importante ter em mente que os principais atores em Washington não entendem de ciência”.

Em 2010, Hayes comunicou ao painel da EcoRisk por e-mail: “Acabo de dar início ao que será o evento acadêmico mais extraordinário desta batalha!” Estava saindo outro artigo seu na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, no qual ele descrevia como girinos machos expostos à atrazina se tornavam fêmeas funcionais com fertilidade deficiente. Ele avisou à Syngenta que era melhor dar um gás na sua campanha de imagem. “É legal saber que na economia interna da empresa posso proporcionar emprego a tanta gente”, escreveu. Ele citou tanto o rapper Tupac Shakur como o rei africano Shaka Zulu: “Nunca deixe um inimigo para trás ou ele se levantará para pular no seu pescoço.”

O chefe de segurança global de produtos da Syngenta mandou uma carta ao editor da Proceedings of the National Academy of Sciences e ao presidente da Academia Nacional de Ciências, manifestando a preocupação de que um “artigo com tantas falhas óbvias tenha conseguido espaço numa revista científica tão reputada”. Um mês mais tarde, a Syngenta apresentou uma queixa ao reitor de Berkeley, afirmando que os e-mails de Hayes violavam as Regras de Conduta Ética da universidade, sobretudo o Respeito por Terceiros.

A Syngenta publicou mais de oitenta das mensagens de Hayes em seu site e incluiu algumas em sua carta ao reitor. Em uma delas, com o assunto “Estão prontos?”, Hayes escreveu: “Chu*a!” Em outra, disse a cientistas da Syngenta que depois de uma conferência tinha saído para beber com seus “amiguinhos republicanos” que queriam saber sobre um número que ele tinha usado em seu artigo. “Enquanto vcs estiverem atrás de mim, sei que sou f*dão”, escreveu. “Aliás, o garoto de vocês esqueceu em cima da mesa a lista de perguntas!”

Berkeley se recusou a tomar medidas disciplinares contra Hayes. O advogado da universidade lembrou em carta à Syngenta que “todos os lados têm responsabilidade igual de agir de forma profissional”. O professor David Wake disse que leu muitas das mensagens e as achou “bem engraçadas”. “Ele os trata como moleques de rua, e eles se veem como capitães da indústria”, disse. “Quando se vê perseguido, ele ataca de volta.”

Michelle Boone, professora de ecologia aquática na Universidade de Miami, que fez parte da comissão de conselheiros científicos da EPA, disse: “Todos acompanhamos o drama de Tyrone Hayes, e algumas pessoas dirão: ‘Ele devia só fazer ciência.’ Mas a ciência não fala sozinha. A indústria tem recursos ilimitados e poder de ataque. Tyrone é o único a chamar a atenção para o que estão fazendo.” Porém, acrescentou, “acho que algumas pessoas sentem que ele perdeu a objetividade”.

Keith Solomon, professor emérito na Universidade de Guelph, Ontário, que recebeu financiamento da Syngenta e integrou o painel da EcoRisk, disse que acadêmicos que recusam dinheiro da indústria não estão imunes à tendenciosidade: estão sob pressão para publicar, para conseguir efetivação e promoções. “Se faço um experimento e o comparo com dados aqui e ali, e não encontro nada, não será fácil publicar”, disse. “Os periódicos querem emoção. Querem que aconteçam coisas ruins.”

Hayes, que engordou mais de 20 quilos desde que foi efetivado em Berkeley, usava echarpes coloridas por cima do terno e brincos de prata do Tibete. No fim de suas palestras, arriscava uns versos: “Vejo abacaxis/lançados como ardis pra confundir./Vou dar de mim o melhor,/desarmar essa granada./Com ciência objetiva, ganhar essa parada.”

Em algumas de suas conferências, Hayes avisava que as consequências do uso da atrazina afetavam bem mais as pessoas de cor. “Se você for negro ou hispânico, é mais provável que viva ou trabalhe em áreas que o exponham a esse lixo”, dizia. Explicava que “de um lado estou tentando jogar dentro das regras da torre de marfim, e do outro as pessoas empregam um conjunto diferente de regras”. A Syngenta falava diretamente ao público, enquanto cientistas publicavam sua pesquisa em “revistas que não se encontram em qualquer banca”.

Hayes estava confiante de que na audiência seguinte da EPA haveria provas suficientes para proibir a atrazina, mas em 2010 a agência concluiu que os estudos indicando risco para seres humanos eram limitados demais. Dois anos depois, durante outra revisão, a EPA determinou que a atrazina não afeta o desenvolvimento sexual de sapos. Naquele momento, havia 75 estudos publicados sobre o assunto, mas a EPA excluiu a maioria deles por não atenderem às exigências de qualidade que a agência tinha estabelecido em 2003. A conclusão se baseava em grande parte num conjunto de estudos financiados pela Syngenta e liderados por Werner Kloas, um professor de endocrinologia na Universidade Humboldt, em Berlim. Um dos coautores era Alan Hosmer, um cientista da Syngenta cujo emprego, segundo uma avaliação de desempenho de 2004, incluía “defender a atrazina” e “influenciar a EPA”.

Depois da audiência, dois dos especialistas independentes que haviam participado da comissão de conselheiros científicos da EPA escreveram, em conjunto com quinze outros cientistas, um artigo (ainda não publicado) reclamando que a agência tinha repetidamente ignorado as recomendações da comissão, e que ela punha “a saúde humana e o ambiente à mercê da indústria”. “A EPA trabalha com a indústria para estabelecer a metodologia desses estudos, e muitas vezes o resultado disso é que a indústria é a única instituição que tem os meios para conduzir a pesquisa”, escreveram. O estudo de Kloas era o mais abrangente em seu gênero: os pesquisadores haviam sido examinados por um auditor externo; os dados brutos haviam sido entregues à EPA. Mas os cientistas escreveram que um conjunto de estudos com uma única espécie “não constituía um edifício suficientemente sólido para sustentar uma avaliação regulatória”. Citando um artigo de Hayes, que analisara dezesseis estudos sobre a atrazina, eles escreveram que “num estudo o melhor indicador das conclusões sobre os efeitos do herbicida atrazina era a fonte de financiamento”.

Em outro artigo, na Policy Perspective, Jason Rohr, um ecologista da Universidade do Sul da Flórida que integrou uma comissão da EPA, criticou a “lucrativa indústria da ‘ciência de aluguel’, que contrata cientistas para contestar dados”. Ele escreveu que uma revisão da literatura científica sobre a atrazina financiada pela Syngenta parecia ter deturpado mais de cinquenta estudos e havia feito 144 declarações imprecisas ou enganosas, das quais “96,5% pareciam beneficiar a Syngenta”.

Rohr, que já conduziu vários experimentos envolvendo a atrazina, disse, em conferências: “Costumo ser coberto de perguntas de sequazes da Syngenta que tentam desmerecer minha pesquisa. Eles procuram apontar furos em vez de observar os efeitos adversos das substâncias. Já tentei recrutar colegas que me disseram que não estão dispostos a mergulhar nesse tipo de pesquisa porque não querem ter a dor de cabeça de precisar defender a própria credibilidade.”

Deborah Cory-Slechta, outra ex-integrante da comissão de conselheiros científicos da EPA, disse que ela também achava que a Syngenta estava tentando sabotar seu trabalho. Professora do centro médico da Universidade de Rochester, Cory-Slechta agora estuda como o herbicida paraquat pode contribuir para doenças do sistema nervoso. “O pessoal da Syngenta costumava me seguir em palestras e dizer que eu não estava usando ‘doses relevantes para humanos’”, disse. “Eles tentavam intimidar meus alunos. Havia uma campanha para insinuar que minha pesquisa não era legítima.”

A Syngenta negou reiterados pedidos de entrevistas, mas Ann Bryan, a gerente sênior do departamento de comunicação externa, me disse por e-mail que alguns dos estudos que eu estava citando não eram confiáveis ou sólidos. Quando mencionei um artigo recente na American Journal of Medical Genetics, que traçava um liame entre a exposição de mães à atrazina e a probabilidade de que seus filhos tivessem um pênis anormalmente pequeno, testículos que não descem ou uma deformidade da uretra – problemas que aumentaram nas últimas décadas –, ela disse que o estudo tinha sido “revisto por cientistas independentes, que encontraram várias falhas”.

Ann Bryan sugeriu que eu falasse com o autor da revisão, David Schwartz, um neurocientista que trabalha para a Innovative Science Solutions, uma firma de consultoria especializada na “defesa de produtos” e estratégias que “permitem que você mostre seus melhores resultados”. Schwartz me disse que estudos epidemiológicos não podem eliminar variáveis capazes de influenciar seus resultados ou fazer afirmações sobre causas. “Fomos incrivelmente enganados por esse tipo de estudo”, disse.

Em 2012, em seu acordo nas ações coletivas, a Syngenta concordou em pagar 105 milhões de dólares para reembolsar mais de mil sistemas aquíferos pelo custo de filtrar a atrazina da água potável, mas a empresa nega qualquer infração. Bryan me disse que “a atrazina não causa e, na verdade, não pode causar efeitos adversos à saúde nos níveis a que as pessoas poderiam ser expostas no ambiente do mundo real”. Ela escreveu que se incomodava com a “insinuação de que nós tentamos desacreditar a todos. Sempre procuramos comunicar o que é corroborado pela ciência e corrigir os registros”. Afirmou ainda que “qualquer marca conhecida, ou mesmo qualquer questão conhecida, tem um programa de comunicação por trás. Com a atrazina não é diferente”.

Em agosto de 2013, Hayes interrompeu seus experimentos. Alegou que os custos de manutenção dos animais haviam aumentado oito vezes numa década, e que ele não tinha como continuar seu programa de pesquisa. Acusou a universidade de cobrar mais dele do que de outros pesquisadores do departamento. Em resposta, a direção do setor de manutenção de animais de laboratório enviou-lhe detalhadas planilhas que comprovavam que as tarifas que lhe são cobradas seguem as taxas-padrão do campus todo, que em anos recentes aumentaram para a maior parte dos pesquisadores. Em uma coluna no site da Forbes, Jon Entine, um jornalista classificado nos registros da Syngenta como um apoiador “externo”, acusou Hayes de se ater a teorias de conspiração e de liderar a “comunidade regulatória internacional numa caçada sem sentido” e “praticamente criminosa”.

No final de novembro, o laboratório de Hayes havia retomado o trabalho. Ele estava usando doações privadas para sustentar os estudantes em vez de pagar taxas pendentes; o laboratório acumulava dívidas. Na antevéspera do Dia de Ação de Graças, 28 de novembro, Hayes e seus alunos conversavam sobre seus planos para o feriado. Ele vestia um casaco de moletom laranja enorme, shorts de ginástica e tênis de corrida, e uma ex-aluna, Diana Salazar Guerrero, comia batatas fritas que outro estudante havia deixado sobre a mesa. Hayes insistiu para que ela participasse do jantar de Ação de Graças na casa dele e se mudasse para o quarto de seu filho, que agora estuda na Faculdade Oberlin, em Ohio. Diana havia acabado de pagar metade do depósito de aluguel de um apartamento, mas Hayes se preocupava com o sujeito com quem ela dividiria as despesas. “Tem certeza de que pode confiar nele?”, perguntou.

Hayes acabara de voltar de Mar del Plata, na Argentina. Tinha voado quinze horas e dirigido 400 quilômetros para falar meia hora sobre a atrazina. “Às vezes eu digo a ele: ‘Por que você não deixa para lá, Tyrone? Passaram-se quinze anos! Como tem energia para continuar?’”, disse Diana. Mas, com mais cientistas documentando os riscos da atrazina, ela presumiu que ele estaria inclinado a seguir em frente. “No início, era só esse cara maluco em Berkeley, e dá para jogar a pecha de maluco em qualquer pessoa de Berkeley”, disse. “Mas agora a maré está virando.”

Num artigo recente na revista Journal of Steroid Biochemistry and Molecular Biology, Hayes e outros 21 cientistas aplicaram os critérios de sir Austin Bradford Hill (que em 1965 delineou as condições necessárias para o estabelecimento de uma relação causal) nos estudos sobre a atrazina em diferentes classes de vertebrados. Eles argumentaram que indícios colhidos de forma independente reiteradamente mostraram que a atrazina perturba o desenvolvimento reprodutivo de machos. O laboratório de Hayes estava trabalhando em mais dois estudos que exploram como a atrazina afeta o comportamento sexual de sapos. Quando perguntei a ele o que faria se a EPA, que neste ano conduz outra revisão da segurança da atrazina, proibisse o herbicida, ele brincou: “Provavelmente ficaria deprimido de novo.”

Não faz muito tempo, Hayes leu uma descrição sua na Wikipédia. Achou desrespeitosa, mas não soube dizer se era um ataque da Syngenta ou se eram apenas internautas que o tinham em pouca consideração. Lembrou, desanimado, das discussões com especialistas financiados pela Syngenta. “Uma coisa é ser perseguido por uma discordância filosófica, outra por julgarem que estou sendo alarmista, quando não é o caso”, disse. “Mas eles nem mesmo tinham opiniões próprias. Alguém estava pagando para que tomassem uma posição.” Ele se perguntou se havia algo inerentemente maluco no ato de denúncia; talvez só os loucos persistissem. Ele estava pronto para a luta, mas parecia em busca de um oponente.

Um de seus primeiros doutorandos, Nigel Noriega, que dirige uma organização dedicada à conservação de florestas tropicais, me disse que até hoje ainda está se recuperando da experiência de sua pesquisa com atrazina, há uma década. Ele passou a ver a ciência como uma cultura rígida, “um clube próprio, uma sociedade de elite”, disse. “E Tyrone não atuava conforme os aspectos sociais apropriados a um cientista.” Noriega se preocupava com o fato de o público ter pouco entendimento do contexto que dá origem a descobertas científicas. “Não tem sentido supor que os cientistas sejam autoridades”, disse. “Um bom cientista passa toda a carreira questionando os próprios fatos. Uma das coisas mais perigosas que se pode fazer é acreditar.”

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...